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Autores

Daniel Wachowicz

Diego Leal de Moura

Camila Inácio da Silva

Túlio Ferreira Lima

Érika Melo

Fabiano Oliveira

Gustavo Carneiro

Júlia Nogueira

Johnathan Bertsch

Nayara Rossi

Stéphanie Firenze

Esther Lya Guedes

Allan Lucena

Sonia Rodrigues

António Corvo

Gui Mendes

Revista

NaNoWriMo

O desafio de escrever 50 mil palavras em um mês

Você é seu próprio editor

Autopublicação se estabelece como uma das áreas do mercado editorial

Solidão

Nunca Mais

Conto por B. Craus Nantai

nº 2

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Equipe

Editora-chefe

Mayara Barros

Conselho Editorial

Claudia Bianco

Marcelle Andrade

Mayara Barros

Victor Vicente

Vitória Pratini

 

Projeto Gráfico

Claudia Bianco

Marcelle Andrade

Mayara Barros

Victor Vicente

Vitória Pratini

Jornalistas

Claudia Bianco

Marcelle Andrade

Mayara Barros

Victor Vicente

Vitória Pratini

 

Colunistas

B. Craus Nantai

Ilustração

B. Craus Nantai

Revisão

Claudia Bianco

Contato

 

contato@revistavessa.com.br

www.revistavessa.com.br

 

Fone: (21) 992335745

Facebook: /revistavessa

Twitter: @RevistaAvessa

1

A

dez/jan 2015

A revista Avessa é uma iniciativa independente de graduandos do curso de Jornalismo da UERJ. Os textos divulgados são de inteira responsabilidade de seus autores e não necessariamente refletem a opinião da revista. Não é permitida a reprodução dos artigos e textos aqui publicados.

Nº 2

Dez/ Jan 2015

Editorial

Fico muito feliz em perceber que mais escritores enviaram textos para essa edição. Infelizmente não podemos publicar tudo por falta de espaço - até mesmo uma revista digital tem esse problema, mas nos empenhamos para que todos saiam satisfeitos com a experiência.

A revista continua crescendo! E apesar da vida cheia de tarefas e cobranças, nós conseguimos trazer mais uma edição para vocês. Acho que encontramos o nosso ritmo e as coisas devem fluir com mais tranquilidade daqui pra frente.

Queria agradecer o apoio de todos que participaram do processo de criação dessa edição - amigos e familiares do Conselho Editorial, assim como a incrível B. Craus Nantai pela iniciativa de nos contactar a respeito do seu trabalho lindo e inspirador.

A Revista Avessa é um eterno processo, ela nunca estará finalizada e agora é hora de pensar no próximo número, começando um novo ano com mais determinação para que possamos dar sempre o melhor possível aos nossos leitores e colaboradores. Obrigada por nos acompanhar na viagem e até a próxima edição!

dez/jan 2015

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A

2

Mayara Barros

Editora-chefe

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poesia

poesia

poesia

poesia

poesia

10

6

9

7

5

Diego Leal de Moura

Camila Inácio da Silva

Túlio Ferreira Lima

Daniel Wachowicz

Crise Orvalho

Lembrei que é difícil esquecer

Mercado Negro

A grande rainha

Érika Melo

Solta a prosa presa

NaNoWriMo

Wallace em pessoa

Você é seu próprio editor

A mulher invisível

Solidão nunca mais

Autopublicação se estabelece como uma das áreas do mercado editorial

O desafio de escrever 50 mil palavras em um mês

Fabiano Oliveira

Gustavo Carneiro

B. Craus Nantai

artigo

artigo

25

11

poesia

15

prosa

20

23

coluna

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46

44

35

prosa

prosa

prosa

prosa

prosa

33

31

Stéphanie Firenze

Johnathan Bertsch

O egoísmo nosso de cada dia

Monstro

Júlia Nogueira

Nayara Rossi

O hotel nas montanhas

Esther Lya Guedes

Bom de bola

Das profundezas do âmago

Onde está... Amor?

Velório no 13

Um fragmento de YUI

O vereador Otacílio

António Corvo

Sonia Rodrigues

Allan Lucena

Gui Mendes

49

prosa

prosa

prosa

53

51

prosa

55

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Daniel Tomaz Wachowicz

d.crowley@hotmail.com

A grande Rainha

Nascido em Taboão da Serra / SP, é formado em Letras e dá aula de português e inglês. Recentemente, fez o lançamento de seu primeiro livro de poesias “Convite ao abismo”, pela Editora Multifoco.

Sempre escorre de minhas mãos

Quando tento pegá-la.

Encontrá-la, de certa forma,

É sempre perdê-la.

Suas visitas são breves

E quando ela se vai,

Resta a Noite,

Que corta meu corpo

Feito lâmina afiada.

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dez/jan 2015

Crise Orvalho

Qual foi o segredo escondido na noite?

E o pranto já seco ao amanhecer?

O sujeito perdido ao encontro da foice

Num espaço sereno buscou se perder

É pobre coitado que fica sem chão

E de tanto cansaço não consegue dormir

Que num sorriso mofado encontrou solidão

E num rosto marcado preferiu partir

 

Crise orvalho, ao anoitecer

Crise orvalho, ao amanhecer

Crise orvalho, resplandecer

 

Sem mais regressão seguiu seu caminho

Depois de tanto enganado deixou a ilusão

Em sua primeira pele nunca fica sozinho

Seu novo povo planeja uma revolução
De gente que busca somente a verdade
A cabeça se usa para refletir
Dificuldade à realidade
Dessa sociedade que vai recair

 

Crise orvalho, ao anoitecer

Crise orvalho, ao amanhecer

Crise orvalho, resplandecer.

dez/jan 2015

A

8

Diego Leal de Moura

diegolealmoura@hotmail.com

“Me defino em partes, tudo que produzo materializa uma parte abstrata de mim. Vivo em busca de superação de tudo aquilo que me limita. Escrevo músicas, poesias, contos e também gosto de desenhar e fotografar para ilustrar meus textos. Divulgo meus trabalhos nas páginas ‘Partes de um Só’ e ‘iincompre-endidos’ no Facebook”.

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Lembrei que

É bobagem dizer que não sente mais.

É bobagem ser radical, quando a emoção está no volume máximo.

Danoso, é esquecer que o coração já foi aquecido.

Porque lembrar do que já passou?

Acho, que as vezes nos esforçamos para trazer o que já nós fez mal.

Um esforço mútuo entre coração tonto e emoção corrompida.

 

De Razão, eu preciso para deixar a situação mais concisa.

Trazer o passado à tona, me tornou uma pessoa anacrônica

um pouco dicotômica

e confusa

 

Lembranças brancas pretas ou azuis

Que você não fique por muito tempo.

Que você seja finito e implícito na minha vida.

Que você vá

“Uma pessoa que esqueceu de contar em números os valores das palavras. É uma pessimista que não se contenta viver, sem uma metáfora diária. Gosta de fotografia, do Machado e dos brechós. Tem medo do tempo e do clichê corriqueiro. Estudante de Relações públicas da UERJ.”

9

A

dez/jan 2015

camilacis14@gmail.com

Camila Inácio da Silva

é difícil esquecer

Apesar de ser amiga do pretérito e dos brechós

Eu ainda quero esquecer para não enlouquecer

Que as minhas lembranças sejam quebradas.

Só por precaução

Não quero que do nada ,sem me avisar, elas mudem de nome

 

Pois o coração ainda não aprendeu diferenciar o lembrar dos rancores

Ahh...

Esquece dos fatores, dos primores dos seus pudores.

Lembrem- se das flores

 

É bobagem dizer que não sente mais.

O sentir é livre e a lembrança apenas pousa por desobediência, fazer o que?

É bobagem tentar esquecer,

seu pensamento é rebelde.

dez/jan 2015

A

10

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ferreiralima@outlook.com

Tulio Ferreira Lima

Mercado Negro

Eu vendo fé, para quem
precisa. E sabores aos
paladares mais refinados.
Eu vendo almas para suicidas
que acreditam no além-vida,
busco a informalidade que você
venha a precisar.

 

No mercado negro, tudo é moeda.
Nada é improvável para quem
sabe onde ir, eu abro portas para
personas não gratas.
Sua vida por um fio, pelo nó da corda
em seu pescoço.
Eu vendo arte para todo esboço,
oásis para toda sede.

 

Vendo o abraço do amante
esquecido, a obliteração
do que agora é sofrimento.
Sou a incitação de quem bate
na porta à procura de prazer.
Sejamos cúmplices em um
crime já prescrito, se o que sinto
é real, posso te proporcionar
por um curto período, o paraíso.

 

Eu vendo ilusão, a passos largos.
Vendo sonhos para quem sofre
de insônia, e horários diurnos para
notívagos.

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A

dez/jan 2015

Solta a prosa presa

O que é isto?

Outro poema?

O que justifica tal audácia

Em exprimir a vida

Em palavras

Escassas?

Disse o poeta:

“Solta a prosa presa”.

O que é isto?

Por que liberar

O que se conteve?

O homem não é bicho.

É pessoa, é pensante,

É vivente constante

Desse labirinto irreal.

Ele tem prosa,

Tem papo, tem pompa.

Tem poesia dentro de si.

Então, abra o peito,

Jorre verdades

Por palavras escritas

Ou ditas, enfim.

Não seja sempre

Aquele que cala

O que perturba

A beleza de ser.

Essa vida não rima,

Mas tem lá os seus versos.

Pois seja seu próprio poeta,

No papel ou na padaria.

Solta essa prosa presa em poesia.

dez/jan 2015

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Érika Melo

kika_melosantos@yahoo.com.br

“Sou carioca, amante das pessoas, das letras e da vida. Assim como a leitura, a escrita me cativou desde tenra idade. Muito mais que um passatempo, são duas companheiras de percurso. Tenho apreço por outras formas de criação artística, como a música e filmes, mas nada ocupa o lugar que a poesia conquistou em mim”

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Wallace

Wallace trabalha

Já vendeu bala, foi ajudante de uma oficina mecânica

E instalou ar-condicionado

Agora entrega comida japonesa feita num restaurante de um amigo do seu primo

Nunca comeu um sashimi de salmão e nem sabe o que é shitake

Mas sabe que muita gente gosta dessa comida crua que não se come com garfo

A moto o restaurante já tinha

Habilitação ele nunca teve

Com seu salário, é melhor pagar cinquenta reais ao PM

Do que uma autoescola

Além do mais, dizem que ele pilota muito bem

Deve ser a prática de várias quedas, inúmeros machucados

E duas internações

A última, mais séria

Perdeu muito sangue

Fraturou ossos

Teve rompimento do fígado

Passou por cinco operações e quase um ano internado

Seus pais oraram

Wallace acredita em Deus

Vai ao culto nos fins de semana, mas nem sempre pode pagar o dízimo

Pensa que o Senhor entende

A vida não é fácil

Wallace lê a Bíblia

Na verdade só o que o pastor cita

Costuma não entender muitas palavras como aqueles “vós”

Mas, para ele, Deus é assim mesmo

Nunca se entende tudo

Dizem que é apenas pra sentir

Wallace sabe que muitos estrangeiros vêm todo ano ao Brasil

Mas ele nunca conseguiu conversar com algum

Nos filmes que ouve dizer que são americanos

Todos falam português, às vezes com expressões estranhas

Wallace é nome inglês

Mas ele não sabe disso

Wallace doesn’t speak english

Français? Non plus

Español tampouco

Ele ouve que mal fala português

E ainda dizem pra ele que pronome reto não pode ser objeto direto

Wallace não sabe o que é pronome nem que algum objeto é direto

Gostava de estudar

Mesmo à noite tentava descobrir o valor de “x” entre uma cabeçada e outra num chamado de Morfeu

Mas a professora foi assaltada na semana passada quando chegava na escola

E nenhum outro aceitou substituí-la

Wallace vê na tv que seu bairro é perigoso

Seus moradores só aparecem na telinha chorando, sob o som de tiros ou algemados

Ou os três ao mesmo tempo

 

Wallace não entendeu porque um grupo de pessoas que moravam ali perto

Foi tirado de casa à força no início da manhã

O som das balas de borracha se misturou ao choro das crianças

Ele pulou da cama

Não sabe o que é reintegração de posse

E só viu um juiz uma vez

Quando um colega apontou para um carro grande que saía de um prédio

Eles tinham 14 anos e engraxavam sapatos

Graças ao sol forte que batia sobre o vidro filmado

Pôde ver a figura de um homem que aparentava mais de 50 anos

Óculos escuros, semblante austero, gravata apertando o gogó

Wallace nunca usou uma gravata, menos ainda entrou num carro como aquele

Dizem que é privilégio dos estudados

Há um tempo, Wallace sentia raiva dos rostos atrás dos vidros parados no sinal

Passava por eles sem ser notado

Depois, ficava triste e voltava pra casa de ônibus

Às vezes chorava no banco, com o rosto voltado para a janela, fungando baixinho

Um dia, ele demorou a voltar, quando ainda vendia bala

Ficou num dos últimos botecos baratos próximos da praia

Perdeu o ônibus que saía meia-noite

Só teria outro dali a uma hora

Resolveu gastar ainda mais a sola do chinelo velho e pequeno no pé

Passou pelas avenidas principais já vazias

Vielas já cheias

De mendigos, putas

Não seriam a mesma coisa?

Acabou tropeçando num livro carcomido na calçada

Pegou as folhas de papel que pareciam andrajos

Desamassou a capa, pôs sob a luz do poste e leu “Antologia Poética”

Eram vários autores: Álvaro de Campos, Ricardo Reis...

 

Achou estranho um verso aleatório

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada...”

Como esse cara nunca conheceu?

Aquilo era tão incomum que resolveu levar o livro pra casa.

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A

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em pessoa

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Jornalista formado pela Puc-Rio, 23 anos, morador de Nova Iguaçu, RJ, cidade com a qual tem uma relação de amor e ódio, sempre com mais amor. Escreve nas horas vagas, que são escassas, e é leitor de praticamente qualquer coisa.

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fabianogbo@gmail.com

Fabiano Oliveira

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NaNoWriMo

Imagem: Jeffrey James Pacres

O desafio de escrever 50 mil palavras em um mês

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odo novembro, o site NaNoWriMo promove um evento incentivando a escrita. O objetivo é escrever 50 mil palavras em 30 dias, com a possibilidade de ter sua obra publicada por uma das editoras parceiras. A sigla significa National Novel Writing Month - ou Mês Nacional da Escrita de Romance, em português. Apesar da referência a uma nacionalidade específica, o evento envolve pessoas do mundo todo. A iniciativa é bancada por doações e promovida pela organização sem fins lucrativos de mesmo nome.

Esse ano, o evento contou com aproximadamente, 400 mil participantes do mundo todo. “Todo ano, somos lembrados que existem histórias que ainda precisam ser contadas, vozes que ainda precisam ser ouvidas em todos os cantos do mundo”, disse o Grant Faulkner, Diretor Executivo, na nota oficial disponível no site oficial. “O NaNoWriMo ajuda pessoas a fazer da criatividade uma prioridade em suas vidas e perceber os jeitos que nossas histórias nos conectam. Nós somos as nossas histórias.”

Durante esse mês, os participantes podem entrar no site para controlar a quantidade de palavras já escritas e que ainda precisam escrever, contando com as funcionalidades disponíveis que incluem um gráfico do progresso, a média sugerida de palavras por dia e a quantidade de palavras por dia necessárias para alcançar a meta de acordo com o seu progresso.

Angelo Dias, 24 anos, designer da Folha de São Paulo diz que o melhor da experiência de participar do NaNoWriMo é criar a disciplina necessária para se escrever. Dias já completou o desafio de escrever 50 mil palavras em um mês e descreve a experiência como fantástica: “Antes do NaNo não sabia que tinha a capacidade de escrever. Depois dele, escrever virou uma paixão.”

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Além do papel

Durante o mês de novembro, é preciso inspiração e perseverança para completar o desafio. É por isso que a comunidade costuma se reunir no fórum, que permite a interação com outros participantes, trocando ideias, marcando eventos de escrita coletiva, competições e jogos com o objetivo de incentivar a produção textual.

Os participantes organizam eventos como Word Wars, desafios relâmpagos em que o objetivo é escrever o máximo de palavras num determinado período de tempo, normalmente 30 minutos, e write-ins, encontros presenciais marcados em algum lugar público com acesso a internet onde os participantes podem discutir suas ideias, trocar experiências e fazer Word Wars presenciais.

“Escrever é uma atividade solitária, e isso torna fácil desistir. Com o NaNoWriMo, você pode compartilhar suas experiências, participar de atividades de escrita que envolvam outras pessoas (como as Word Wars, Song Wars e os encontros) e, dessa forma, aumentar a sua criatividade e disposição para escrever”, conta Matheus Herpich, 18 anos, estudante de Biomedicina.

O evento conta também com 816 voluntários, chamados de Municipal Liaisons, responsáveis por organizar os write-ins, proporcionando maior integração entre os participantes de uma comunidade. "Muitos de nossos escritores participantes não ficam satisfeitos apenas em criar mundos no papel, eles vão além, construindo incríveis comunidades locais" conta Sarah Mackey, Diretora de Engajamento Comunitário, na nota oficial.

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Logotipo oficial.

Cortesia de National Novel Writing Month

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Write-in que ocorreu em São Paulo no dia 8 de novembro

Os prêmios

Todos os participantes que conseguem as 50 mil palavras dentro do tempo limite são considerados vencedores e podem aproveitar dos prêmios oferecidos por empresas parceiras. Geralmente, são descontos em livros ou softwares de escrita e planejamento, para auxiliar na tarefa de escrever. Algumas livrarias online, como a empresa Kobo, oferecem ainda um número de downloads gratuitos de seus ebooks.

Porém, os prêmios que mais chamam atenção são oferecidos pelas editoras de autopublicação, como Lulu.com e Amazon, que oferecem edições impressas dos livros ganhadores e serviços editoriais, ajudando os escritores a se lançarem no mercado.

“O objetivo principal do NaNoWriMo não é escrever as 50 mil palavras; isso é apenas um extra, um pano de fundo para o que realmente importa: incentivar a escrita mundo afora” explica Matheus Herpich. E realmente, é o que acontece: nos 16 anos de existência do evento, mais de 200 livros foram publicados por vencedores, seja tradicionalmente ou autopublicados.

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Foto: Velani Salim Diz

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Créditos

www.nanowrimo.org

www.flickr.com/photos/jjpacres/

 

Opiniões

Renan Santos, 24 anos

Eu acho que a meta do NaNo das 50 mil palavras é desafiadora para pessoas como eu, perfeccionistas. Participar do NaNo foi bom porque me forçou a sair da minha zona de conforto. Acho que a melhor parte é a possibilidade libertar os potenciais escritores de suas próprias limitações e da falsa ideia de que o esboço da obra tem que ser uma obra prima.

O que os participantes dizem sobre a experiência

O NaNo te obriga a escrever. Ele te faz vencer o pesadelo tenebroso que é a folha em branco. Você precisa superar sua meta diária, com ou sem inspiração. Isso é o melhor que o NaNo oferece.

Érika Costa, 22 anos

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Mayara Barros

may@revistavessa.com

Todos os 30 dias de novembro foram uma experiência única, onde eu respirava escrita 24 horas por dia, foi como submergir num mundo a parte, me dedicando totalmente ao desafio. Mas vencer, chegar às 50 mil palavras, foi indescritível, sensação plena de dever cumprido e de que sou capaz de encarar uma maratona insana como esta e sair vitoriosa.

Cristiane Shcwinden, 33 anos

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Você

Autopublicação se estabelece como uma das áreas do mercado editorial

C

om todas as mudanças tecnológicas e os aparatos virtuais que vem sendo criados para encurtar caminhos e tornar tudo mais fácil e rápido para o usuário, não é surpresa que um dos segmentos mais tradicionais do mercado como o setor editorial também tenha sofrido mudanças. Uma de suas características mais definidas sempre foi o trajeto autor-obra-editora-seleção-publicação. São poucas as pessoas que não relacionam a imagem de um autor àquela ideia romantizada por Hollywood de um artista talentoso que vive correndo atrás de uma editora para publicar seu livro e poder pagar as contas. A chance de se autopublicar, porém, parece vir afetando esse esquema.

Hoje é possível lançar um livro de maneira quase autônoma através da internet sem precisar recorrer a agentes e editoras. Amazon, Whattpad e Clube de Autores são apenas alguns dos sites que possuem a plataforma de autopublicação de livros e textos online, onde autores não conhecidos podem ter a oportunidade de publicar algum trabalho, serem lidos e, quem sabe, contratados por uma editora.

Criticada por muitos por banalizar a cultura literária e possibilitar que material de baixa qualidade seja disponibilizado, a autopublicação é consagrada por outros por tornar a democratização do mercado e as oportunidades geradas para autores desconhecidos algo real. Dentro dessas condições, a literatura erótica é o gênero que mais cresce. Cabe ressaltar que o gênero “literatura erótica” faz parte de uma nova leva de estilos literários que vem surgindo a partir do advento do livro digital e que só agora começam a ser utilizados pelas editoras para classificar alguns de seus livros físicos. A categoria “jovem adulto” é outro desses gêneros.

Segundo o artigo Autopublicação nunca foi tão fácil, mas fama e dinheiro são escassos, publicado pela agência de notícias Reuters no dia 13 de outubro de 2014, “A autopublicação transformou o que significa ser um escritor. Simplesmente enviar um arquivo PDF e gastar um pouco com o design da capa pode transformar qualquer um em um autor publicado em uma plataforma de livros digitais como o Kindle, da Amazon, recebendo até 70% do preço de capa”. Durante o mesmo texto, divulgado após a feira de livros de Frankfurt – maior encontro internacional do setor editorial –, o autor afirma que “O papel tradicional das editoras – fazer a seleção entre vários manuscritos, editar os selecionados e criar o pacote, fazer o marketing e distribuir o livro finalizado – foi eliminado. As editoras, no entanto, não estão muito preocupadas. A autopublicação pode funcionar a favor delas também”.

Foi o que ocorreu em 2013 com a americana E.L.James, que autopublicou Cinquenta Tons de Cinza – uma das publicações mais lucrativas dos últimos anos – e logo em seguida foi contratada pela Randon House, e com a brasileira Mila Wander, recordista de visualizações no Whattpad com seu livro Despedida de Solteira.

“Eu já tinha publicado de maneira impressa outro livro, mas tinha medo de tentar publicar Despedida por ser do gênero literatura erótica. Então eu tinha um projeto muito legal nas mãos, mas não sabia o que fazer com ele. Foi aí que optei pela publicação gratuita no Whattpad e tive a grata surpresa de ser bem aceita pelos leitores. Não fazia ideia de que a repercussão atingiria esse nível”, conta a pernambucana, “encontrada” através da plataforma pela editora Literata, que fará a publicação impressa de seu trabalho.

Depois desses resultados, Mila publicou também na Amazon, e em menos de seis meses foram mais de 1.500 e-books comercializados. Despedida de Solteira está na lista dos mais vendidos em literatura erótica do site até hoje. “O gênero erótico tem crescido bastante e a as pessoas estão com menos vergonha de mostrarem interesse no assunto. Acho que é por isso que, atualmente, esse é o gênero que mais cresce”, explica Mila. Não é à toa que livros como Cinquenta tons de cinza, Belo Desastre e Toda sua estão entre os mais vendidos do Google Play, Amazon e até mesmo de livrarias físicas como a Saraiva.

De acordo com uma recente pesquisa da Bowker, empresa de informações bibliográficas, só no último ano o número de autopublicações nos Estados Unidos chegou a quase 500 mil exemplares, um aumento de 17% em relação a 2012 e de mais de 400% em relação a 2008. Apesar desse número continuar a crescer, o ritmo parece estar se normalizando após alguns anos bem explosivos. De tendência a prática virou negócio.

é seu próprio editor

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Imagem: Pedro Ribeiro Simões

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Apesar desse número continuar a crescer, o ritmo parece estar se

normalizando após alguns anos bem explosivos. De tendência a prática virou negócio.

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Créditos

www.flickr.com/photos/pedrosimoes7/

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Divulgação

Claudia Bianco

claudia@revistavessa.com

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Fonte: www.wattpad.com

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Atualmente, a plataforma Wattpad é uma das maiores comunidades de escritores e leitores.

Histórias publicadas

Usuários registrados

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75 milhões

35 milhões

9 bilhões

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A mulher invisível

Em Ceilândia, na casa 90, conjunto B, Setor O, uma vez viveu uma mulher que teve a habilidade de se tornar invisível. Maria usava sempre saias floridas e trabalhava na casa de uma família na Asa Norte. Nas segundas-feiras, na época da seca, quando as manhãs eram bastante frias, ela usava também um casaco vermelho enquanto esperava pelo ônibus às 6h15. Ela andava da W3 até o trabalho prestando atenção nos ipês. Às vezes calhava de ela andar com uma ou outra colega nesses cinco minutos e poder conversar um pouco. 

Um dia, Maria conversava com uma colega sobre o fim-de-semana parado, sobre a igreja, sobre as flores.

“Adoro o amarelo dos Ipês, Dinalva!”

“A gente adora a Deus, Maria. Tome jeito.”

“Você entendeu... Tava pensando em comprar um casaquinho novo. Amarelo assim. Que nem as flores.”

“Menina! Casaco pra quê? Essa cidade é só quentura! Só vai usar do ponto pra casa da patroa mesmo...”

E tinham que se despedir. As conversas eram sempre assim. Mas Maria sempre continuava a conversa em sua mente mesmo depois de se despedir. É que se a gente para uma ideia no meio, ela vai embora pra nunca mais. As vezes, elas até dizem que vão voltar, mas não era verdade. Ideias são bicho chato, Maria pensava. Elas não gostam de esperar. 

Maria abriu a porta da casa e encontrou a patroa ajoelhada ao lado do carro, ajeitando o cadarço do filho.

“Bom dia, Dona Regina.”

“Maria! Quase que você não me pega! Deixei tudo explicado na cozinha. Tem um bilhete perto do fogão.”

“Tá bem, Dona Regina.”

A patroa falava rápido e prestava atenção no filho, que por sua vez prestava atenção em alguma coisa no chão.

“Você troca a roupa de cama do quarto do Fernando que ele fez xixi de novo... Tá impossível, esse menino.”

Maria só escutava. Ela não podia passar pra dentro da casa, porque a patroa estava no caminho.

“E passa a roupa do...” a patroa falava rápido, como mil coisas se amontoando. “E tem também o jantar na quinta-feira...” Maria prestava atenção nos sapatos bonitos da patroa. Ela era uma mulher bonita. “É isso! Deixa eu correr que já to atrasada!”

Em menos de cinco minutos ela já estava do lado de fora buzinando e dando um tchauzinho pela janela. E Maria entrava na casa, pensando no casaquinho amarelo. Ela podia ter perguntado pra Dona Regina o que ela pensava do casaco. Mas não dava tempo. A ideia ia ter de continuar em sua cabeça.

A semana foi passando e Maria se viu envolta nas camas, cozinhas e ônibus. Sábado ela criou coragem e foi na Feira dos Goianos ver seu casaquinho amarelo. Ela queria ter saído cedo de casa, mas dormiu um pouco mais e foi chegar na feira às 10 horas da manhã. Já tava tudo lotado. Maria não gostava de tanta gente assim. Era todo mundo se esbarrando. Gente desconhecida. Ela foi na direção da banca onde tinha o casaco que ela queria. De longe viu o amarelo no alto e foi. Só tinha um casaco do jeito que ela queria, mas Maria foi confiante que ia chegar a tempo. O que era seu ninguém tiraria, pensava. Maria fixou os olhos no casaco e foi enfrentando o mar de gente. Ninguém parecia vê-la. Ninguém dava passagem. Cada um pensava em si. Só em si. “Gente chata”, Maria pensava, “Vou comprar o casaco e voltar pra casa... Não fico mais nem um minuto aqui”, ela pensava enquanto se desviava das sacoleiras que carregavam duas, três malas cheias de roupa. “Pra quê tanta coisa?” Maria pensava. “Ninguém consegue usar tanta roupa”.

Maria tava quase perto da banca quando sentiu uma coisa quente na sua perna. Quente mesmo. Dessas que a gente tira a perna na hora, por reflexo, mas demoram uns 30 segundos até a dor chegar. Tinha sido uma mulher com sotaque do sul. Sabe aquelas que falam cantando e carregam água fervendo pra cima e pra baixo? Mas o que é que alguém queria com chimarrão num calor desses? Numa feira?

Maria não conseguiu o casaco, mas descobriu que a feira tinha uns brigadistas a postos. Desses que usam macacões amarelos. Lindos os bombeiros. Eles fizeram um curativo na perna dela, com pomada e tudo. 

“Cê gosta desse uniforme?”

“Eu acho quente... Quente e feio. Por quê?”

“Eu acho lindo! Se eu pudesse, usava um desses pra ir trabalhar” falou Maria.

“Você faz o que?” disse o bombeiro enquanto finalizava o curativo.

“Sou doméstica. Lá no plano.”

“É... Fica estranho ir de macacão pro trabalho” respondeu ele, e sorriu.

Maria gostou do sorriso. Gostou da conversa. Do toque. Queria perguntar o que ele achava se, ao invés de macacão, ela comprasse só um casaco. Se ele achava que ela ficava bonita de amarelo. Mas não. Não conseguiu continuar. As palavras ficaram guardadas e a ideia foi interrompida.

Eles se despediram e Maria não conseguiu mais pensar no casaco. Ela pensava no brigadista que a atendeu. Ela se afastou dele e voltou pra o meio das pessoas. Mas ficou seguindo. Seguia com distância segura, mas seguia. Ele era o seu novo casaco amarelo e ela não podia tirar os olhos dele. Ela desistiu do casaco mas ficou pela feira. Era sábado e ela não tinha o que fazer mesmo. Ninguém pra visitar. 

Ela comeu um pastel e fingiu olhar roupas. E o tempo passou. E a feira foi se esvaziando. Ele ficava a maior parte do tempo com os outros brigadistas, parado num canto. Eles ficavam perto de uma cadeira de plástico, dessas brancas. Uma só pros três, então eles se revezavam. Um ficava sentado e os outros dois passeavam pela feira quase vazia. Maria tava seguindo seu brigadista amarelo quando, por algum descuido, um cálculo errado dela, ele parou e olhou pra trás. Foi tão inesperado, que ela não conseguiu desviar do caminho ou fingir que estava fazendo outra coisa. Ele olhou diretamente pra ela e Maria quis sumir.

Ele ficou parado olhando pra ela. Ela não conseguia se mover, como um cachorro que foi pego fazendo algo errado. O amigo brigadista virou pra ele.

“Que foi?”

“Achei que tinha alguém me seguindo... Sensação estranha”.

“Bora, já tá na hora da última ronda e de ir pra casa”.

Os olhos dele passaram direto por Maria. Ela ficou parada sem entender, mas ele realmente não a tinha visto. Ela olhou em volta e não tinha mais ninguém por lá. Ela tava só. Era impossível que ele não a tivesse visto. 

Aquele dia ela não tinha planos. Ela morava só, e todo sábado o único compromisso era ligar pra família no Maranhão pra saber dos sobrinhos, da roça, dos problemas. Ela não teve problemas em perder a ligação daquele sábado pra seguir o brigadista. Quando ele saiu da feira, se despediu dos outros dois, que foram pro ponto. Ele foi a pé sem saber que Maria ia atrás. Ele se virou três vezes no caminho. Quando ele olhava das primeira vezes, Maria se retraía. No início ela não tinha certeza se ele realmente não a via. Se ninguém a enxergava ou como aquilo acontecia.

Ela percebeu que ele ia entrar numa casa e se apressou. Conseguiu entrar quando ele tava fechando a porta.

Viu o brigadista entrar, dizer boa noite pra mãe e pro pai que viam TV. Foi com ele ao quarto e o acompanhou. Viu sua cama, seu armário, suas fotos na estante. Viu-o tirando o macacão e mostrando o torso largo. Pegando a toalha e se dirigindo ao banho. Estava junto com ele voltando ao quarto e viu o macacão amarelo no chão e corpo nu na cama. O telefonema pra uma menina e os planos do que fazer naquele sábado a noite. Maria acompanhou com os olhos abertos tudo aquilo que nunca tinha visto. E passou duas horas junto do brigadista até que ele saiu e ela saiu junto. Saiu da casa do rapaz. Saiu da sua vida, que ficava guardada dentro daqueles muros que ela sempre passava pra voltar pra sua casa. 

Ela decidiu, então, ir pra casa. Passou pelo portão e foi em direção ao fundo do terreno onde estava o quarto que ela alugava. Ela não conversava com as pessoas que moravam lá. Eles só batiam na porta dela uma vez por mês pra pegar o aluguel. 

Maria entrou, ligou a luz e o rádio. Se olhou no espelho e não enxergou nada. Ela não conseguia se ver. Não conseguia ver os cabelos em coque bem apertado, nem o casaquinho. Cantava junto da rádio enquanto se tocava no rosto... 

“Entra na minha casa... Entra na minha vida...”

Maria desligou o rádio e se deitou na cama. Ela se enxergava, seu braços, seu casaco, sua perna machucada. Olhou pra perna e pro curativo. Ela nunca tinha se deitado nua, como o brigadista tinha feito. Naquele instante ela sentiu vontade de fazer o mesmo. De se deitar nua. De se deitar nua e conversar com alguém. De ligar pro celular de alguém e conversar sem usar nenhuma roupa, que nem o brigadista fez. Daquele jeito. Será que a outra pessoa ia saber? Ia desconfiar que ela estava nua? Mas ela tinha vergonha. E não tinha crédito no celular. Nem tinha com quem conversar. Só a família no Maranhão.

Maria não largou aquela ideia e continuou. Deixou ela se desenvolver enquanto tirava o casaquinho. Pensava em como o brigadista não a tinha visto naquela tarde. Tirava a camisa e a saia. Nem os pais dele. Tirava a calcinha e o sutiã e se deitava nua na cama. Pensava em como estava invisível e como ninguém a veria. E em como o orelhão era ali na frente. A ideia foi crescendo e se revelando e Maria a permitiu.

Maria se levantou nua e se olhou no espelho. Abriu a porta do seu quarto e passou caminhando, nua, pelo portão. Foi em direção ao orelhão, que ficava na esquina. Passou por umas crianças jogando bola e não chamou nenhuma atenção. Chegou no telefone e discou. Conversou com seu pai e sua mãe. Conversou com eles nua, sentindo o vento batendo em suas pernas e seus seios. Maria gostou da sensação de escutar seu pai reclamando da falta de chuva que ia acabar com a safra da roça aquele ano enquanto estava totalmente nua. Gostou de escutar sua mãe preocupada com a vida dela em Brasília e se ela tava fazendo tudo direitinho, arrumando a casa da patroa do jeito que ela tinha ensinado. Gostou de conversar sobre isso enquanto um cachorro a encarava do outro lado da rua. Conversou por menos de 10 minutos e voltou pro seu quarto. Ligou o rádio e se deitou nua na cama, sem nem se importar com os pés sujos.

Maria pensou, olhando pro teto. A música tocava, mas ela não cantava junto. Outra ideia surgiu em sua cabeça. A ideia do brigadista nu na cama. Dele conversando e marcando de sair no sábado com uma menina qualquer. Dele rindo na feira. Maria se levantou e desligou o rádio e voltou pra cama. Nua na cama ela pensava. O brigadista tocando em sua perna e apertando o curativo. O macacão amarelo dele. O macacão amarelo dele, jogado no chão perto da cama. O casaco amarelo que ela queria. O Ipê amarelo. Dinalva. “A gente adora a Deus, Maria... Tome jeito!” O torso largo do brigadista. Dona Regina no meio do caminho, amarrando o cadarço do menino. Maria pensava na cozinha e na segunda-feira. Conversar com Dinalva só por cinco minutos. Seguir o brigadista pela feira por horas. O corpo nu dele debaixo do chuveiro. As pessoas todas na feira se esbarrando contra ela. Impedindo que ela chegasse ao seu casaco amarelo. O corpo cheiroso dele na cama. O macacão sujo no chão ao lado da cama.

Domingo, Maria não conseguiu ir pra igreja de manhã. Não conseguiu sair da cama por um bom tempo. Tinha medo do que ia encontrar ao se olhar no espelho. Depois de um tempo juntando forças, decidiu que ia ligar o rádio. Só ligar o rádio e voltar pra cama. Levantou-se e, nos dois passos que a separavam da cômoda, passou em frente ao espelho. Maria se enxergou.

Colocou sua saia florida, sua camisa branca e foi pra feira. No domingo de manhã quase nada estava aberto na rua. Maria caminhava e percebia que não era mais invisível como no dia anterior. Andou até a feira e procurou a banca do casaco amarelo. A feira tava cheia, mas ainda no passo lento e vagaroso de um domingo de manhã. No caminho passou perto dos brigadistas, que continuavam perto da cadeira branca de plástico. O que ela tinha seguido no dia anterior não estava lá não. Finalmente encontrou a banca do casaquinho amarelo. Mas ela estava fechada. Ia ter que voltar na próxima semana. Na parede da banca tinha um papel que dizia que eles estavam procurando vendedores. Ela leu isso e sentiu uma coisa estranha.

Maria olhou em volta e viu o tanto de gente que caminhava pela feira. Naquele horário tinha muita gente tomando café. Ela olhou de novo pro papel na parede da banca. Percebeu que alguém da banca ao lado a olhava. Ela gostou disso e anotou o telefone na palma da mão.

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Nasceu em Brasília em 1986. Ele é advogado de formação e viveu em Berlim por dois anos, onde fez mestrado em Políticas Públicas. O autor acredita que a arte é parte essencial da vida e que podemos encontrá-la em quase todos os lugares se apenas prestarmos atenção.

gustavofsc@gmail.com

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julia_18nogueira@hotmail.com

Bom de bola

Júlia Nogueira

Carioca e estudante de engenharia química da PUC-Rio, e, apesar do amor pelos números, sou também amante das letras. Amo ler e escrever e procuro manter esses hábitos vivos como hobby e lazer.

Quando eu tinha 2 anos de idade, meu pai comprou minha primeira bola. Ela era azul e bem brilhante. Em poucos dias eu era capaz de correr atrás dela, tentar chutá-la, e acertar de vez em quando. Pelo menos é o que posso ver nos vídeos caseiros de mim gravados na época pela minha madrinha babona.

Quando eu tinha 5 anos de idade, sai da creche para uma escolinha maior, que tinha um pequeno campo de futebol. Todas às quintas-feiras, às 15h, a turma do pré-fundamental tinha direito a usar a quadra. Entrávamos saltitando, seguindo uma professora loira que usava um rabo de cavalo comprido e um apito com uma tira laranja em torno do pescoço.

Quando eu tinha 8 anos, o professor, agora um careca gordo e bigodudo, achava que eu deveria levar “aquilo a sério”, e que deveria jogar profissionalmente. Mamãe, que sempre babou pelo filho e seu amor “pela bola”, ficou receosa. E se eu tivesse que jogar em outro estado? E se eu acabasse descuidando dos estudos? A ideia foi abandonada.

Quando eu tinha 12 anos, jogava na final do campeonato do meu bairro. Meu time foi o campeão, os “bolas murchas”. Nome engraçado para um time que ganhou os últimos 5 campeonatos, eu sei. No final do jogo, um homem usando terno preto e gravata roxa me abordou. Disse que eu jogava muito bem, que estava de olho em mim há algum tempo e que estava interessado no meu “talento com a bola”. Me deu um cartão branco, com apenas um numero de telefone gravado em tinta preta. Fiquei com medo da reação de mamãe, fiquei com medo do não. Esperei um dia, no final daquela semana, em que ela e papai saíram juntos. Foram ao mercado. Peguei o telefone e disquei o numero impresso no cartão. Combinei com o homem do outro lado da linha, que não parecia ser o mesmo que havia me dado o cartão, um encontro na terça-feira seguinte, às 9h, num clube famoso em um bairro da cidade.

Fui sem a mamãe – e fui um sucesso. Haviam uns homens reunidos, fazendo testes com garotos da minha idade. Gostaram muito do que eu fizera lá – aparentemente gostaram mais de mim do que dos outros garotos – e queriam que eu assinasse um contrato. O problema é que eu precisava da assinatura de um dos meus responsáveis.

Falei com papai quando ele foi dar uma geral no carro, domingo de manha. Contei tudo, disse que sabia que a mamãe diria não, mas que era o meu sonho. Que ela um dia entenderia quando eu fosse famoso. Ele aceitou. Os treinos eram três vezes por semana. Mamãe ficou 6 meses sem falar conosco.

Quando eu tinha 15 anos, já havia participado de varias competições importantes, cada vez mais frequentemente e longe de casa. Mas conforme eu saía, o dinheiro e o reconhecimento entravam na minha casa, e minha mãe foi aceitando. Naquele ano, rachei meu braço em uma queda de bicicleta, voltando pra casa do colégio. O médico disse que era sério, ia precisar de cirurgia, ia ser pelo menos um ano sem jogar. Meus pais, o técnico, o time, o clube, todo mundo ficou preocupado. A cirurgia foi um sucesso, tudo pago pelo clube, e me recuperei em 8 meses. Foi a primeira vez que tive medo de verdade do meu sonho poder um dia vir a ter um fim.

Quando eu tinha 18, fui chamado para jogar pelo meu país pela primeira vez. A essa altura, eu era o orgulho da família, e já sustentava a maior parte da renda lá de casa. O medo esquecido, o braço já esquecido, só restava ansiedade e o pânico de não ser suficiente, de não agradar, de falhar. Não vencemos, mas não ficamos mal colocados. Fui considerado um destaque na minha equipe.

Hoje, aos 20 anos, eu estou aqui. Estou aqui nesse país que eu não conheço, mas de que muito já ouvi falar. Mamãe, como de costume, pediu pra eu trazer alguma coisa tradicional daqui pra ela, mas são tantas opções, que eu ainda não sei o que levar. Nunca vi país pra ter tantas coisas tradicionais – e, pelo que pude ver, com pouca tradição sendo seguida. E nem é o primeiro país que visito para jogar.

Mais uma vez a ansiedade, o medo de dar errado. Dessa vez, medo de decepcionar meus companheiros, meu paredro, minha família, minha torcida, meu país. Pavor do que vão falar de nós em todos os noticiários locais e internacionais.

Deixa eu calçar as chuteiras, rezar e encarar as luzes ofuscantes dos olhos do mundo....

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Johnathan Bertsch

Das profundezas

do âmago

Escritor e poeta. Publicou textos no Brasil, Portugal, Espanhã e Itália. Estréia como autor com o livro de poesias “Não preciso falar de amor”, premiado com Menção Especial no Concurso LiteraCidade Jovem - 2014, e será lançado no primeiro semestre de 2015 pela editora Pastelaria Studio, em Portugal.

Desde muito jovem sonho com barcos.

O vendaval que encapela severamente o mar traz consigo o odor agridoce que somente uma futura calmaria pode proporcionar e eu, entre esse devaneio dorminhoco, sinto o rosto ser golpeado por rajadas de água salgada. São ondas provindas da orla na costa. Enquanto gaivotas com gritos vorazes atiram-se em voos rasantes para roubar meu pescado, tão sacrificado entre ao tempestuoso clima, minhas mãos ficam trêmulas tentando arrastar as redes. Com toda força dos pulmões cansados solto urros assombrosos para espantá-las, porém sem êxito.

Descambado entrego-me no chão do convés como quem perde a batalha contra a brutalidade da natureza e me rendo aos caprichos do deus mitológico Poseidon e suas vontades para com o meu fracasso pessoal.

O suor ainda quente untando toda epiderme, com pupilas dilatadas, desperto ofegante nas madrugadas furtivas que tormentam-me constante. Estou derrotado e acordado.

Na manhã seguinte, sempre há outra, caminho ao escritório pensando no mar. Da janela posso avistar o farol e pequenas jangadas cruzando o manto azul em um trânsito frenético e deslizante. Sonho acordado dessa vez admitindo para o meu eu que o maior desejo escondido desde a infância entre os baús das memórias seletivas é estar lá; entre mastros e cheiro de peixe fresco.

Em trinta anos árduos de labuta construí um império de exportações de frutos-do-mar sem jamais aprender a pescar. Sirvo alimentos para toda a Ásia e Oceania, mas não possuo habilidade para orientar-me com uma simples bússola. O norte é um mistério e o sul apenas ficção, leste e oeste, somente imaginação. Aprendi ordenar homens, e não dominar as feras do oceano.

Queridos amigos, muito além de empregados, abandonaram jovens viúvas por esse amor salgado. Já não sei contar quantos deles perdi nessas batalhas e não consigo explicar o temor que me invade dessas águas, mas sinto-me filho desse ventre e meus braços deveriam ser o leme.

Quando cai a noite já sei com que vou sonhar. Fazem anos que deixou de ser adivinhação. Ao entregar-me ao leito serpenteio um fecho de luz para abrilhantar o quarto com a esperança forçada em ler mais algumas páginas do livro amarelado e companheiro. “O Velho e o Mar”, presente do falecido pai; homem de braços fortes e poucas palavras. Um autêntico marinheiro de épocas passadas que cruzou a vida cumprindo seu ofício, ser pescador.

Conforme o esperado, minha embarcação está atracada léguas de distância de lugar algum e o céu caliginoso não dá trégua por fúria magistral. As redes pesam muitas libras e sou um marinheiro só, travando guerra contra nós bem amarrados e sangue, e o endurecimento córneo da pele. O mundo quer me expulsar, exorcizar minha coragem momentânea, que nenhum homem habilidoso ousaria desafiar.

Mas o chão do deque não foi o aparador como em outros sonhos. Caí de modo brusco nas gélidas águas parecendo punhais cortando o corpo enfraquecido. Abri os olhos e o sal não irritou-os, porém o mundo azular estava repleto de monstros colossais famintos por minha carne.

Antes de qualquer reação em pânico, um gancho metálico me atacou arrastando-me à bordo. O homem que surgiu do além e salvara minha vida era familiar; familiar demais confesso. Reconheci de imediato meu pai.

“Um homem do mar vive no mar; tende a aceitá-lo e esperar ser aceito!”, foram as únicas palavras deixadas ao abandonar-me por entre a névoa densa.

O despertar foi súbito. Em prantos por longos minutos me fizeram entender o que significava aquele barco, o mar revolto e a aparição do ídolo maior. Naquele instante tudo encaixou-se.

Na manhã seguinte segui ao trabalho com mais dúvidas que certezas. Meus passos acelerados foram substituídos por quase rastejar e eu não tinha pressa alguma para chegar.

Sentado por horas no cubículo de mármore, onde passei uma vida inteira, fiquei somente deslumbrando as ondas beijarem a praia através da janela. Havia beleza tão irreal, jamais notada anteriormente, que o êxtase partiu para nostalgia. Agora soube o que fazer.

Afrouxei o nó da gravata, abandonei sapatos caros e meias brancas, e pela primeira vez toquei meus pés na areia fina.

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Monstro

Ela o amara, cuidara dele, fizera tudo por ele! Droga, ela confiara naquele homem e ele tinha pisado nisso como se não fosse nada! Jogou por água abaixo tudo o que fizera para escondê-lo, para ajudá-lo! Achando que no fundo, bem no fundo... Ele não fosse tão ruim quanto ela mesma o pintara.

Bateu a porta do quarto, furiosa. Como ele pôde?! Como podia tê-la enganado tanto?! Passou a mão pelo pescoço, as feridas já não estavam lá, mas ainda podia senti-las, podia até vê-las se parasse para imaginar. Mordeu os próprios lábios e socou a porta frustrada. Como o deixara fazer aquilo?! Aquela boca pálida manchada de sangue, curvando-se em um sorriso... Um maldito sorriso falso! Ah, como ela queria agora arrancar aquele sorriso de seu rosto! E iria... Ah sim, o moreno não perderia por esperar.

Arrepiou-se e fechou os próprios punhos, as unhas machucando a carne, sentia as lágrimas teimarem em cair. Ah não... Não, não, não, ela não choraria por ele! Secou as lágrimas com as costas das mãos e, em um acesso de raiva, começou a jogar tudo o que tinha pela frente no chão.

Ouviu um baque surdo e parou finalmente para olhar o que fazia. O livro que jogara caíra aberto. Um simples livro de contos que ela até agora se perguntava como conseguira terminar, pois faltara rasgá-lo devido à tamanha tolice de suas personagens. “Heroínas da nova era” era o que imaginava que deveriam ser, mas eram todas simples princesinhas vestidas de calças que ainda esperavam seus príncipes encantados. Até mesmo aquelas que se dispunham a pegar em armas, a agir por si mesmas, acabavam, por fim, sendo tão senis quanto às outras, sem conseguir pensar sozinhas nem manter suas decisões em frente ao seu “grande amor”, ou hesitando antes de acabar com um monstro por “sentir seu coração pulsar”.

“Mas é claro que seu coração pulsa, é pra isso que ele existe!”

Pensou e não apenas sobre o livro. Por mais que não fosse admitir ela sabia que também dizia a si mesma, porque agira exatamente igual àquelas personagens: tola, sem ação... Sem pensar no que fazia, esquecendo-se de seu próprio eu por um simples pacote de testosterona... Isso ela admitia. Deixara-se levar tanto que nem percebeu o quão podre estava ficando a situação, fora uma idiota e tudo isso por causa de um “grande amor”... Grande perda de tempo, isso sim, aquilo não valia a pena em relação ao que passava no momento.

Mas tudo iria mudar. Se antes agira como aquelas heroínas de segunda mão, agora colocaria um fim em todas as besteiras que fizera. Recusava-se a continuar como elas, fazendo seu papel de moça apaixonada, sem ação. Não repetiria seus erros e não hesitaria... Ao contrário, sentiria prazer ao vê-lo se desfazendo aos seus pés.

Levantou-se mais calma. Sim, não ia perder tempo lamentando ou amaldiçoando, tinha algo muito mais produtivo a fazer. Pegou o que precisava, enfiando tudo na mochila: água benta, punhal de prata, kit de primeiros socorros, tudo, exceto as estacas... Essas ela levava presas ao cinto.

Colocou a mochila nas costas e saiu pela janela para evitar a família. Percorria rapidamente a cidade até chegar à saída, não que fosse muito longe de sua casa, mas estava com pressa, as pernas pedalando o mais rápido que conseguiam. No céu as estrelas iam aparecendo conforme ela deixava as luzes urbanas para trás e só o que iluminava a estrada eram elas, a lua e poucos postes que ocasionalmente apareciam, mas a ruiva realmente não precisava de iluminação, ela sequer precisava olhar para onde estava indo. Sabia o caminho de cor, afinal, o percorrera durante todos os dias desde que conhecera o mais velho.

Observou de longe a casa de três andares quase caindo aos pedaços. Aquela que fora escolhida pelo monstro que estava à beira da morte, a criatura que ajudara a salvar e caíra na besteira de continuar a lhe fornecer sua vida. Apesar de antiga, a construção ainda tinha certo esplendor... Ou deveria dizer que ela passava certo temor. Uma verdadeira “mansão da Transilvania” como apareceria em filmes, mas, apesar de sua ansiedade, isso não a deixava menos bela, interessante... Por mais que agora a odiasse.

Largou a bicicleta na calçada e invadiu a casa num rompante, passando como o vento por todos os cômodos. Um caçador procurando sua presa, até que finalmente o achou.

Entrou no porão, chutando a porta com força e mal precisou passar os olhos pelo local para encontrá-lo.

O maldito estava sentado tranquilamente em uma poltrona ostentosa demais para aquele lugar. Calmo, como se estivesse estado ali o tempo todo... Esperando.

- Você demorou.

Seu sangue ferveu ao ouvir a voz dele. Avançou. Os passos rápidos. De repente não mais andava, senão corria, lançando-se em direção a ele, a estaca em punho, a respiração pesada. Furiosa.

E em um milissegundo ele sumiu de sua frente. Ela virou-se rapidamente, já esperava por aquilo, mas obviamente o outro fora mais rápido.

Segurara sua mão com força. A menina gemeu de dor, odiando-se mentalmente por isso, enquanto sentia a força sumir e a estaca cair ao chão com um baque.

- Entendo que esteja com raiva, pequena. Mas compreenda: Fiz o que tinha que fazer.

Crispou os lábios e, irritada, tentou acertar-lhe um soco. Agora ele segurava suas duas mãos sem nenhum esforço como se ela fosse uma simples criança. Fez o que tinha que fazer? Sentia o estômago embrulhar com aquele absurdo.

- O que tinha que fazer?!- Gritou frustrada por sequer poder descontar sua raiva golpeando-o. – Você não tinha de fazer nada! Podia ter feito de qualquer outro jeito, qualquer outra coisa, mas não! Não, você tinha que acabar com tudo não é? Mandar tudo pelos ares! – Gritou e começou a se debater, tentando soltar-se do aperto dele. Tentava chutá-lo, mas era como chutar uma parede. Pensava naquelas pessoas, aquelas tantas que morreram e nunca saberiam por quem; Pensou em si mesma e, mesmo não querendo admitir isso por soar egoísta, o que mais machucava era saber que, além de todas aquelas pessoas, ele não se importaria em eliminá-la também se com isso conseguisse o que queria. – Claro, como se um monstro como você fosse escolher outra forma. – Cuspiu as palavras e, agora que estava falando, tudo saía num rompante, tão mais fácil, tão... Verdadeiro. – Um monstro! É isso o que você é!

E porque diabos ele ouvia tudo aquilo calado?! Estaria muito mais satisfeita se o maior estivesse lhe batendo por aquilo, se decidisse atirá-la contra a parede e deixasse cair àquela maldita máscara que ele insistia em manter!

- Shhh... Entendo menina, eu sei que é isso o que parece agora...

- Não é o que parece! É o que é! Você é um monstro e não pude acreditar que me deixei ser enganada por você. – Rosnava, mas ainda assim sua voz saía um tanto estridente demais, triste demais, quase desesperada.

- Eu nunca enganei você, pequena, era você mesma que negava minha natureza.

A voz dele era suave... Suave demais. Ela sentia sua mente querer se nublar e provavelmente seria isso o que aconteceria, não fosse toda a sua ira no momento. Olhar nos olhos dele também era difícil, na verdade evitava estrategicamente fazer isso, não queria sucumbir por hipnose.

- É. – Riu amargamente, o olhar ainda desviado dos olhos amarelados do homem dirigindo-se ao chão, arrependida. Estúpida, estúpida, estúpida! – E como estava enganada. Você não conseguiria amar ninguém além de si mesmo! Você... Você tentou me matar. – E sua ênfase em “me” não saíra como planejara. Parecia que estava prestes a chorar com a voz tão alta daquela forma.

- Não. Eu nunca tive intenção disso. – Qualquer um juraria que ele dizia a verdade, não que fosse mentira, o mais velho não tinha feito aquilo para matá-la... Isso ia ser apenas uma consequência, não era? Não que ele fosse se importar depois. – Olhe para mim pequena. – Ouviu-o dizer naquela voz tão autoritária e fez exatamente o contrário, até senti-lo segurar seu queixo com firmeza a obrigando a fazer o que se recusara. – Eu nunca a machucaria. – Ele falava lentamente, dava para ver seus lábios formarem cada palavra, mas o moreno forçou-a a olhar em seus olhos, e eles eram sempre tão profundos... – Eu a amo, pequena.

- Não... – A jovem ainda sussurrou, quase como se implorasse a si mesma para não sucumbir.

- Eu te amo... Pode não acreditar se quiser, tem todos os motivos para isso.

- Não acredito. – A voz que lhe escapou era tão fraca que nem convenceu a si própria.

- Mas eu amo e sei que você também. – Balançou a cabeça negativamente, não era mais forçada a encará-lo. – No fundo você sabe disso. – A moça viu o rosto dele se aproximar, os olhos fixos nela, aquele olhar suave dele que a deixava sem ação. – Você é minha. – Ele sussurrou e a menina não pôde resistir ao beijo que veio a seguir. Suave, delicado, quase um pedido de desculpas. Carinhoso. Então percebeu que não estava quase chorando... Ela realmente estava chorando.

O vampiro soltou seus braços e a abraçou pela cintura, apertando-a contra seu torso e levando uma das mãos para acariciar-lhe a nuca. Algo dentro de sua mente gritava para se afastar, para não fazer tudo de novo. “Não!”, gritava sua própria voz interior, mas ela não conseguia resistir.

O mais velho separou o beijo e encostou a cabeça dela em seus ombros, acariciando-a como se a consolasse. “Shhhh”, ele fazia e a menor sabia que era porque soluçava. O moreno tinha razão, ela o amava e acabava de comprovar aquilo. Não havia estado confortável assim há muito tempo e não parecia querer se mover dali, por mais que aquela parte consciente de sua mente tentasse forçá-la a isso. Também não conseguia conter as lágrimas... Não podia simplesmente negar o que sentia.

O mais velho acariciava seus cabelos, tranquilo agora por tê-la mais calma.

- Tudo bem... Tudo bem agora.

Disse o moreno, ainda ouvindo seus fracos soluços, as lágrimas caindo em sua camisa, tão frágil, tão delicada... Tão manipulável.

Os lábios dele se curvaram para cima em um sorriso de canto, arrogante e vitorioso, enquanto aproximava novamente sua boca do corpo feminino, roçando o rosto em seu cabelo e descendo enquanto distribuía beijos até chegar ao seu pescoço, onde novamente o sorriso se formou, agora com dois brilhantes dentes brancos e pontudos.

- Você é minha, pequena.

Ela não saberia explicar como, mas pôde percebê-lo sorrir da primeira vez mesmo sem olhá-lo diretamente. Talvez fosse só sua imaginação, seu senso de auto preservação ou algo na voz dele, mas ela soube. E então pareceu despertar.

Com um grito, ele a largou de repente, afastando-se em um pulo, antes que seus dentes chegassem a encostar no pescoço dela. Sentia seu peito como se estivesse em chamas, até mesmo seu rosto ardia, havia cheiro de queimado e de repente ele entendeu o porquê. Sua face se contorceu em uma expressão de ódio enquanto seus olhos, agora vermelhos de raiva, ainda encaravam o pequeno vidro de água benta aberto na mão da ruiva, que aproveitara que seus braços haviam sido soltos para atacá-lo com aquilo.

- Sua moleca!

Quando ele a largou, a menina utilizou sua distração para se afastar, precisava de algum tempo para se recompor. Observou-o enquanto ele tentava entender o que acontecia, imaginando que a face com olhos vermelhos e dentes perigosamente arreganhados combinava bem mais com ele do que a máscara de cavalheiro que usara durante todo aquele tempo.

Por que o atacara? Simples sobrevivência, não iria voltar a ser uma simples fonte de alimento ou o que quer que ele fosse fazer consigo. Se o amava? É claro, aquilo, infelizmente, estava mais do que óbvio, mas amá-lo era prejudicial demais para si e ela gostava muito de si mesma para se deixar ser enganada por um morcego com palavras bonitas. Pelo menos não pela segunda vez.

Ouviu-o gritar e lançou um olhar para o vidro que antes ele encarava. Vazio. Lançou-o longe, desviando-se por um segundo do vampiro que desembestara em sua direção...

A mochila! A onde estava a mochila?! Olhou em volta e viu-a caída no chão próxima a ele. Sem chance. Novamente ele atacava. Em nada se parecia com o moço de voz suave que há poucos segundos estava beijando-a, não, agora ele parecia mais um animal, ou melhor, um demônio.

Ela se desviou de mais um ataque, anos de treinamento realmente valiam a pena. Ele avançava, os dentes arreganhados, pronto para mordê-la. A face de uma fera com olhos brilhantes que rosnava com uma voz irreconhecível.

O demônio estava com raiva, raiva por ter sido pego com a guarda tão baixa e ela gostava disso, pelo menos ele sentia parte da fração da ira que a garota estava sentindo e isso não era nem o começo.

No improviso apoderou-se de uma barra de ferro caída no chão do aposento para impedir mais um avanço do inimigo e tentar golpeá-lo. A cada golpe que ele desviava com aquela velocidade anormal a perspectiva de atingi-lo com a barra e ver sua cabeça se partir a incentivava, ao mesmo tempo em que sua frustração aumentava por não tê-lo acertado nenhuma vez.

Finalmente as habilidades sobrenaturais da criatura fizeram jus sobre as dela. Com um golpe, a barra escapou de sua mão. Surpresa e fora de si golpeou-o com um soco conseguindo a rápida sensação de satisfação por finalmente acertá-lo, sentindo a pele e a carne se comprimirem contra sua mão e desferindo mais um soco pelo simples instinto. Sensação rápida e falsa, pois, apesar de acertá-lo, aquilo simplesmente o deixara mais irritado, e a ela também por ver que não houvera efeito algum apesar de todo o esforço que fizera, mas não houve tempo para se incomodar muito com aquilo.

No segundo seguinte, só soube que fora arremessada para o outro lado da sala, caindo de bruços sobre o chão. Levantou a cabeça para procurá-lo, mas sequer precisou. Avistou-o se aproximar, a expressão de desprezo no rosto, mas bem mais humana do que há segundos atrás, já não parecia ter pressa. E porque teria? Estava desarmada, seus golpes não faziam efeito e imaginou que aos olhos dele já deveria estar acabada.

Mas tudo bem, a jovem fizera como tinha que ter feito, ela lutara. Não se entregara simplesmente por uma carência incontrolável, oh não. Ela resistira e estava orgulhosa disso, estava orgulhosa do soco que dera nele, por mais que não houvesse tido efeito. A única coisa que queria era poder arrastá-lo junto quando tudo acabasse simplesmente pela satisfação de saber que o mandara para o inferno.

Foi quando vagou o olhar pela sala sabendo que tudo estaria perdido que viu, caída a poucos passos, a sua única chance de vida, mas, antes que pudesse sequer se aproximar, ele já se abaixava a sua frente.

- Bravo... Para uma novata devo dizer que essas últimas horas foram bastante... Interessantes.

A caçadora o ouviu enquanto ele observava-a de cima. Crispou os lábios, desgostosa, se ele ia fazer isso podia pelo menos não esfregar na cara, né?

– Sabe que se tivesse sido um pouquinho mais quietinha talvez não precisasse ser assim? Poderíamos até mesmo dividir uma eternidade juntos, pensei seriamente nisso. – Foi ela que quase rosnou dessa vez. A imortalidade já lhe parecera bastante tentadora e se ele tivesse dito isso há alguns dias ela lhe imploraria para que o fizesse, para deixá-la passar a eternidade com ele... Agora a ideia lhe parecia um insulto. – Mas foi bom brincar com você.

Aquelas mãos frias tocavam-lhe novamente o queixo. Asco. O vampiro estava acariciando seu rosto e ela sentia o peito voltar a arder, aquilo era tão... Ultrajante! Quem ele achava que era?

- Bem, nós dois sabíamos como isso iria terminar, não é? Mesmo que só tenha percebido há pouco. – Ele riu cínico.

Então ia mesmo morrer assim? Aos pés de um maldito como aquele homem? O jovem afastou a mão de seu rosto e a menina o observou, aparentemente sem poder, ou querer, se mexer. As coisas pareciam passar em câmera lenta agora. Viu os dentes dele crescerem novamente e tinha a noção de que o vampiro deslizava os dedos por seu pescoço. Arrepiou-se de leve e não um bom arrepio. Não, não, ela não podia terminar assim! Correra aquilo tudo por nada?! Passara por tudo aquilo para acabar dessa forma?! E o pior... Deixá-lo solto para fazer tudo de novo?

-Sim. – O vampiro a olhou confuso, as sobrancelhas se erguendo em surpresa.

- O que disse?

A caçadora ergueu os olhos para encará-lo e pela primeira vez no dia eles pareciam calmos, tristes, com a certeza de alguma coisa, como se algo acabasse de ser revelado, mas serenos. Por um instante.

-Eu sempre soube como isso tinha que acabar. – Desde o primeiro minuto em que se deixara ser levada.

Em um rompante, antes que ele pudesse processar o que acontecia, ela o empurrou, e o fez com a força de uma matadora de monstros. Levado pela surpresa, o moreno cambaleou e caiu, enquanto a garota pulava por sobre seu corpo.

O homem arregalou os olhos, sabendo o que ela faria. Sua mente pensando mais rápido que o próprio corpo responderia.

- Você não pode!

O vampiro gritou, levantando-se e virando-se em direção à menina mais rápido que um humano poderia perceber... Mas não rápido o bastante. Quando se virou ela já estava em sua frente e a estaca perfurava sua carne.

Pulara o moreno caído e agarrara a estaca jogada ao chão, virando-se de volta para seu alvo. Por um leve momento algo em sua mente perguntou se deveria fazer aquilo, se podia fazer aquilo contra alguém que amava. A resposta veio em seguida ao vê-lo levantar-se, procurando-lhe. Foi quando enfiou a estaca contra seu peito, sem dar chance de reação.

A expressão de surpresa e dor que tomou seu rosto quase a comoveu enquanto abria a boca, atônito, sem emitir um som sequer. A moça se afastou, segurando a vontade de fazer qualquer coisa para ajuda-lo, mesmo sabendo que de nada adiantaria. Teve a impressão de ver leves filetes de sangue saírem dos olhos de seu inimigo enquanto a auto combustão em seu corpo começava. Ele chorava?

- Raquel.

Os lábios de coloração pálida se moveram, mas não se conseguiu ouvir som algum a não ser o grito agoniado que ecoou em seguida para além das paredes da casa, e depois... Nada. Apenas cinzas.

Ele se fora.

Por um momento a caçadora ficou ali, observando as cinzas caírem quase que flutuando. Não havia marca de corpo, apenas o cheiro de queimado. Estava feito. Doía. De repente, sentiu que estava chorando e dessa vez não se impediu. Em um choro silencioso, deixou que as lágrimas rolassem, afinal, até ela podia chorar por quem amara, não é? Mesmo sem ser correspondida. Não soube quanto tempo ficou ali, olhando as cinzas com o olhar vazio.

Então se virou, não importava o quanto doía, ainda doía menos do que continuar amando-o uma vida inteira. Sabia que um dia iria passar. Tudo passava, até ele que antes fora eterno. Agora não era mais hora de lamentações, terminara seu trabalho. Pegou a bicicleta e se foi, sem olhar para trás, sentindo uma leveza se apoderar de si... Finalmente. Acabara.

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Nayara possui 20 anos, começou a escrever por hobbie aos 12 anos, inserida no universo das fanfics e rpgs, que a incentivou a desenvolver os próprios personagens. Começou a escrever contos a partir dos 16 e hoje estuda Química na Universidade de Brasília.

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nayararossisilva@gmail.com

Nayara Rossi

O egoísmo nosso

de cada dia

Um dia, em um transporte público, lotado, com ar condicionado que não dava vazão e uma rapidez desigual, que fazia as freadas bruscas se tornarem solavancos e esbarrões, ouvi duas mulheres de meia idade conversarem. A que estava de pé ao meu lado disse:

- Não basta estar calor, ainda tem que aturar essa muvuca, com sovaco fedido na cara. – no mesmo instante inclinei o rosto disfarçadamente para o lado, dando uma boa respirada perto do meu braço levantado. Não era a mim que ela se referia, então relaxei, mas quando a outra respondeu, tirei um dos fones de ouvido para poder escutar melhor.

- Nem me fale. Isso aqui tá cada dia pior. Um dia alguém ainda vai passar mal e morrer, ai eu quero ver o que eles vão fazer. – a que estava sentada, carregando diversas sacolas, respondeu dramaticamente, com desgosto.

- E você acha que já não teve isso? Deve ter tido sim, é que não divulgam. Eles só falam o que querem. Mas os podres pesados, empurram pra de baixo do tapete e fingem que tá tudo uma maravilha.

- É.... isso é o que o governo faz. Ajeita pra ficar bonitinho, mas é só pra inglês ver. A gente é que sabe o que passa todo dia. É muvuca, aperto, calor, fedor... não tá dando, não. – nesse momento, uma senhora se aproximou de nós. Olhei em volta e percebi um adolescente olhando o celular, um executivo mirando fixamente a própria pasta e a mulher com as sacolas se abanando. A senhorinha se segurava na barra ao novo lado, os dedos enrugados se apertando uns nos outros cada vez mais.

- E não vai melhorar, não. Até hoje não fizeram nada. Ficam fazendo BRT, BR disso, daquilo, porque é mais fácil comprar um onibuzinho mais rápido, do que construir mais linhas de metrô, que é mais eficiente. Mas ai dá trabalho, né?! Gasta dinheiro, demora. Ai, ninguém quer. Esses políticos são tudo um bando de egoístas-burros, que só pensam no dinheiro que vão roubar com obra superfaturada, mas não fazem nada pelo povo que prometeram defender e ajudar.

Estação central. Muitas pessoas saem, uma mulher jovem esbarra na senhora e diz um “desculpa” curto, grosso e baixo. O acento ao lado da mulher com as bolsas fica vago e a outra senta. A nossa volta, nenhum outro acento fica vago. A senhora continua em pé. Eu a olho e ela me dirige um sorriso cansado e companheiro, como quem diz: “Pois é, minha filha. É isso mesmo que você está vendo.” Penso em reclamar, em falar para as mulheres cederem um acento à ela, mas não o faço. Não quero confusão para o meu lado.

- Mas é isso mesmo, puro egoísmo. – a que acaba de sentar responde bufando – Ninguém quer saber de ajudar os outros, não. Todo mundo só olha para o próprio umbigo.

Aperto os olhos, em sua direção. Elas não percebem, mas penso comigo mesma: “Ah, jura?! Fale-me mais sobre isso!”. Reviro os olhos, quase indignada. A senhora continua chacoalhando ao meu lado. O executivo que encarava a pasta se levanta para sair na próxima estação, mas ela precisava caminhar até metade do vagão para se sentar. Quando ocorreu a freada, ela quase foi lançada para a frente, mas um outro senhor a apoiou e ajudou a sentar, finalmente. Quanto às duas mulheres, param a conversa ao verem a cena.

- Viu, é disso que eu estou falando. Olha que absurdo, essa senhora caindo porque esse maquinista é uma bosta e fica freando brusco desse jeito. Tudo errado. Não faz bem nem o próprio trabalho, e olha que é pago para isso, hein. Não pensa nos passageiros, puro egoísmo...

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“Leonina, 19 anos e carioca que não gosta de praia. Tenho na escrita uma aliada, que começou como fonte de escape, virou criatividade e se tornou objetivo de vida. Atualmente, faço faculdade de história e tento deixar o perfeccionismo de lado e me arriscar, colocando minhas palavras à prova.”

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tete.firenze@hotmail.com

Stéphanie Firenze

O hotel nas

montanhas

Ele odiava ter que passar por aquela estrada, ainda mais na frente daquilo, mas ele sabia que era necessário. Pelo menos até falar com algum político para fazerem um outro trecho. Engoliu em seco, fechou os vidros do carro e ligou a rádio. Infelizmente, ele sabia que ali a rádio pegava bem.

A música começou a tocar, o locutor havia dito algo como “clássicos” no meio da frase, mas ao ouvir a letra, ele se arrependeu amargamente de ter ligado o rádio. No entanto, seu cérebro em nenhum momento, mandou suas mãos desligarem o aparelho. Sim, seu coração gostava de sofrer com a maldita nostalgia.

Sabe filho... Essa será a nossa música. Será por que ela sempre toca quando passamos por aqui.

Olhou para a esquerda e viu uma cadeia de montanhas alaranjadas. Engoliu em seco ao se lembrar do dia em que foi ali pela primeira vez. Elas pareciam maiores naquela época... Não! Ele tinha que prestar atenção na estrada, tinha que chegar a tempo em casa para que pudesse comer e se focar na reunião do dia seguinte! Porém, foi impossível não olhar para a direita naquele instante. Ele sabia que se conseguisse avistar a cadeia de montanhas, o hotel estaria por perto. O maldito hotel nostálgico.

O carro passou em alta velocidade pela estrada, mas o hotel passou lentamente, torturando-o pacientemente. Ah sim... Em tantas coisas da sua vida, o hotel seria classificado como um fantasma. Um fantasma do seu passado que adorava torturá-lo. Praguejando todos tipos de palavrões permitidos à Deus, ele virou o carro e parou-o no estacionamento em frente ao hotel.

Ainda havia a mesma cor branca amarelada. O mesmo letreiro chamativo e velho. Ainda tinha as mesmas janelas e a mesma sacada que sempre lhe dava problemas. Ele desligou o carro e permitiu-se analisar aquele hotel que por tantos anos mandou seu cérebro esquecer.

Fazia quinze anos que ele se recusava a voltar ali, mas o destino era traiçoeiro e fez ele ter que passar ali cinco vezes na semana, quatro vezes ao mês. Respirando fundo, ele fechou os olhos. Sentia o cheiro de poeira levantada pelos carros. Sentia o cheiro do perfume que ele sempre usava. Lembrou-se no mesmo instante do dia que perguntou ao pai por que diabos iam até aquele hotel, assim como lembrou-se da sua reposta “por que aqui é o único lugar que não cobra para se ver as montanhas durante o pôr do sol”.

Instintivamente, ele virou o pulso e olhou o horário. Estava voltando para casa. Sim... Aquela coisa grande, com paredes, móveis dentro dela, fria e sem graça, era sua casa. Mas ele sabia que nunca seria seu lar. Não sem ele.

Lar? Ora filho... O lugar onde estão pensando em você, é o lugar para onde deve voltar. Lá é o lar.

Suspirou. Ele era um ser vagando pelo mundo empresarial, procurando alguém que juntos, pudessem transformar sua casa grande, em lar. Talvez nunca fosse encontrar alguém, não para dar um lar para ele, como seu pai fazia.

Em breve o sol desceria, escondendo-se atrás das montanhas que por anos admirou tanto. E logo sentiu uma aflição no peito. Não queria ver o pôr do sol ali. Para começar, não queria nem ver pôr do sol. Mas ele também sabia que não podia fugir do óbvio. E o óbvio era: ele queria ver o pôr do sol, apenas para ter o prazer de se transportar para uma época que, mesmo sem mãe, ele se sentiu amado.

A lembrança de quando seu pai havia contado para ele que a mãe morreu no parto, nunca abandonou sua cabeça. Ele queria pensar mais na morte da mãe que nunca conheceu, do que nos momentos que passou com o pai há quinze anos.

Virou-se para o hotel e lembrou-se de todos os finais de semana que seu pai o levou ali. De todas as lembranças boas que tiveram. Do dia que conseguiram uma suíte. Lembrou-se da vez que brincou de esconde-esconde com o pai, ele havia se escondido e após horas sem o pai lhe encontrar, ele saiu e descobriu que o pai havia dormido no sofá. Até mesmo das lembranças ruins, mas que eles sabiam que ririam num futuro. Com do dia que ficou pendurado na sacada por que ela quebrou. Ou da vez que quase colocou fogo no quarto, obviamente sem querer. Sim... Ele estava rindo daquelas desgraças temporárias. Talvez a única ruim de fato, era a perda de seu pai.

Ele sabia que o pôr do sol não teria graça sem ele, mas também sabia que ele queria que o filho continuasse a vida.

Ele ergueu o rosto e sentiu os raios do sol ultrapassando as montanhas e tocando nele, fechou os olhos e permitiu-se sorrir, sentindo o toque do sol, tão carinhoso quanto o do pai. Respirou fundo ao sentir claramente os dedos quentes do pai tocando-lhe a face.

É... Não seria tão ruim ver o pôr do sol.

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Natural de Porto Alegre, sempre gostou de ler e vive para escrever. Acredita que a humanidade pode ser mudada através da literatura e luta por isso. Atualmente, trabalha numa biblioteca com sua mãe.

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est-herl@hotmail.com

Esther Lya Guedes

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Onde está... Amor?

É graduado em Comunicação Digital e possui intima relação com a tecnologia e as expressões artísticas e literárias, Hoje é ator, cantor e escritor, dedicando sua vida e carreira inteiramente às Artes e Cultura.

Escreve contos e crônicas do cotidiano e espiritualidade no blog www.umikizu.com.

allan@umikizu.com

Allan Lucena

O Amor e o Amar, quantas possibilidades e sem envolver nada mais que o próprio ser. Simples assim? Talvez seja tão simples que o “ser” queira tornar-se humano e então, torna-se um pouco complicado. A máquina humana e a mente que processa tudo precisa de parâmetros, lógicas, nomes e sobrenomes para compreender e registrar os acontecimentos na memória. Os bons momentos são gravados na pele, os outros ficam no ar. Desprendem-se e retornam quando bem querem.

Os causos de amor que causam confusão, começam num sonho e acabam na assinatura do documento que o homem inventou pra proteger os bens que tem de quaisquer desavenças de sentimento. Com ou sem choro, com brigas ou em paz, tanto faz, pois eles não assinam porque querem se separar, mas porque não querem se ver jamais. Documentos que guardam na gaveta, para relembrar coisas que não saem da cabeça, mas que aparecerão na próxima faxina no guarda-roupas.

E me pego, mais uma vez, fugindo do assunto. O amor e o amar, que hoje em dia muito nos falta. E que fazer para recuperar o amor perdido, dentro do ser escondido e afogado em mágoas? Espero chegar à resposta no final dessa história. E que os anjos me auxiliem, afinal de contas, um pouco da fé que falta no amor é a mesma que falta na disciplina do espírito. Fé de acreditar que ele existe, mesmo nesse mundo triste e desvalorizado, maltratado andarilho nas bocas sujas dos botecos, pintado de cinza no jornal, hoje, impresso em cores. Peguemos na fé, no amor, nos valores que não tem preço. Caretíssimo! Carentíssimo. Mas funciona.

Cartomantes e adolescentes, são um caso de amor. Platonismo que não se explica e não se separam jamais, e quando a maturidade chega, e jogamos os dados da vida na mesa, o trabalho e as responsabilidades tomam conta do espaço, impedindo que um adulto formado perca nada com tamanha bobagem. O amor vem com o tempo. A aparência e a conta bancária são as qualidades no currículo da paquera, coloca-se no outdoor do carro uma bandeira: aqui só entra quem tem sucesso de primeira. Enquanto isso na cama, o travesseiro é alagado, já que a solidão é o diabo que acompanha esse romance.

Outro caso de amor é a amizade. Amar os amigos é um caso de amor eterno, foge do platônico, foge da razão. Começa e não termina nunca mais! A amizade segue, é amor e ódio, pode ser colorida, pode ser distante, pode ser tanta coisa que os amigos nunca entendem realmente qual é o real motivo de estarem juntos, sentados na calçada numa terça-feira quente de dezembro, conversando sobre sexo, trabalho e seriados de tv, vestidos com ‘roupas de ficar em casa’. Alguém é capaz de explicar?

O amor ao acaso. Realmente acontece com o tempo, o tempo que você pega aquele mesmo ônibus lotado e a única pessoa que reconhece, todos os dias, e destaca-se daquela multidão toda que constantemente pega o mesmo ônibus com você. É aquela pessoa que se não aparece um dia você fica preocupado, e que quando perde o ônibus ou se adianta, fica estressado. Ou nem tanto. Falar com ela é difícil, já que quando você entra no ônibus já existe um mar de cabeças apertadas entre vocês. Ainda se descessem no mesmo ponto, mas você assiste a pessoa descer dois pontos antes do seu, todos os dias. Até que um dia vocês se encontram no mercado, ou na sala de espera de um pronto socorro qualquer alguém puxa papo...

Cupido existe, e pode estar mais próximo que você imagina. O amor a primeira vista é um dos mais bonitos. Reciproco e romântico. Aproveite o momento e não perca oportunidade, transforme o olhar em palavras, uma conversa regada à cerveja, café ou água, não importa! Faça acontecer. Os olhos não podem esconder quando é o coração quem fala. E onde entra o cupido nessa história? Não é com a flecha, mas sim com aquele amigo que faz a parte que você está com medo de fazer, vai lá e coloca vocês dois próximos de alguma forma. Os Cupidos são assim...

Ainda não cheguei a nenhuma resposta, e são tantos amores, com seus causos e causas que intrigam nossa razão, afinal de contas, amor e amar são as expressões mais sutis da emoção, são criação de improviso para as existências cansadas da solitude. Do resto, sabemos que é muito bom, e que é finito, como tudo na existência humana. Qual é a surpresa de terminar este escrito sem nenhum veredito? Nenhuma! Mas verdade seja dita, que mesmo se fosse conhecida, a verdadeira identidade do amor não pode ser descrita. Acredito, do fundo do coração, que é essa nossa missão, encontrarmo-nos com o amor e fazer dele nossa força, encarando a morte sem medo, até que encontremos esse temido anfitrião, acompanhados de amor e finalmente poder dizer: Aqui jaz o Amor.

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Sonia Rodrigues

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bem intencionado

“Tenho 59 anos. nasci em Santos, em uma cidade espremida entre o mar e a serra, à parte do continente. Fui médica por opção e sou escritora por vocação. Alimento-me de livros. Minha mente inquieta é fascinada pelo mundo das palavras.”

O vereador

O vereador Otacílio era o homem das ideias. De moinhos de vento a árvores de poemas, ele defendia tudo que prometesse tornar esse um mundo ecológico. Que maravilha, um planeta onde a humanidade respeitasse as outras espécies, onde homens, bichos e plantas repartissem o espaço com harmonia...
Apesar das risadas dos outros edis, Otacílio ia já pelos vinte anos de carreira política quando seu amigo de infância foi eleito prefeito. Conhecido como “Justo” por sua retidão de caráter, o novo prefeito pediu ao amigo algumas sugestões.
- Escreva aí o que você acha que a cidade precisa, com detalhes. Vou estudar suas ideias.
Otacílio, entusiasmado, passou o fim de semana a escrever. Segunda-feira pela manhã, dez folhas meticulosamente datilografadas, contendo 50 de melhores ideias, foi entregue ao prefeito, que lhe prometeu aproveitar ao menos uma.
Otacílio aguardou, ansioso. Seu projeto de uso da energia solar era o mais promissor, pois a região era quente e ensolarada. Ele tinha esperança que suas sugestões sociais merecessem alguma atenção: jardins e hortas comunitárias, currículo profissionalizante onde alunos da periferia fossem engajados em atividades úteis ao bairro, os estagiários oferecendo atendimento gratuito de excelente qualidade como cabeleireiros, sapateiros, alfaiates, gráficos, melhorando a vida da população carente.
Pequenos empreendedores poderiam alavancar a economia local aproveitando o artesanato feito com folhas de bananeira e com a criação da indústria do lixo reciclado, paralelo ao projeto de postos de recolhimento do lixo tóxico: pilhas, lâmpadas fluorescentes, radiografias, remédios vencidos, aparelhos eletrônicos. E mais! A substituição das embalagens plásticas por vidros e sacolas de papel. Nos séculos em que a humanidade desconhecia o plástico, os animais marinhos...
Um tapa no ombro o acordou de seus devaneios. Era
o prefeito, a comunicar que, inspirado pela postura ambientalista do amigo, mandara espalhar gatos pelos jardins da praia, uma maneira ecológica de combater os ratos.
O pobre vereador protestou, pálido. Os gatos transmitem doenças, iriam espantar os passarinhos e ele não escrevera nada sobre gatos em sua lista de propostas! Claro que não, a ideia fora mesmo do prefeito, mas... inspirado na visão de mundo de Otacílio.
- O que vou aproveitar de suas ideias são os girassóis.
Girassóis? O prefeito se afastou e Otacílio franziu a testa, perplexo. Aí lembrou-se: no ano anterior, voltando de férias na França, trouxera para o amigo uma réplica de um quadro de Van Gogh, comentara sobre a primavera em Provence e sobre os pequenos encantadores girassóis europeus, muito menores que os nossos. Os girassóis certamente não estavam entre as 50 ideias entregues ao Justo!
No dia seguinte, ao caminhar pela orla, Otacílio tropeçava nos gatos e reparou horrorizado em várias pessoas trazendo pratinhos com leite e comida para os bichanos. Enquanto isso, do bairro do Zé Menino até o bairro da Ponta da Praia, dúzias de jardineiros arrancavam lírios, margaridas e camélias, substituindo todas as flores por centenas de girassóis. Para completar o desastre, não faltou nem o jornalista, ao lado da câmera, focalizando o desditoso personagem desta história.
- Estamos aqui, caros telespectadores, com o autor da ideia de remodelação dos jardins da orla da praia, cartão postal de nossa cidade. O vereador Otacílio.
Em vão o coitado protestava. O jornalista insistia, implacável: “o próprio prefeito afirmou na edição matinal que a ideia dos girassóis é do companheiro de longa data, que também o inspirara no controle ecológico dos ratos.”
Otacílio, suando profusamente, levou as mãos ao peito e sentou-se, cônscio de seu suicídio político. Nos meses seguintes o prefeito passava apressado pelo amigo, sempre a agradecer pela feliz lembrança dos girassóis a embelezar nossas praias. (e a engordar os ratos, pois quanto aos gatos...)
O prefeito, como a maioria dos políticos, sofria de miopia moral, era incapaz de perceber a consternação do amigo e as críticas fundamentadas dos munícipes.
Nem o prefeito nem Otacílio foram reeleitos. Até o final do mandato, o ingênuo Justo interpretava como elogios as exclamações “aí vai o homem dos gatos.” Já Otacílio abaixava os olhos e corava ao subir as escadarias da prefeitura e ser cumprimentado pelo apelido: Doutor Jivago.

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antonio.corvo@hotmail.com

António Corvo

Velório no 13

É escritor, formado em Comunicação Social e Letras; especializou-se em Literatura Comparada e Literatura Medieval. Dá orientação a escritores iniciantes e sessões de Escrita Criativa para o público em geral. Esteve na Bienal do Rio em 2013 com os livros O Romance do Horto (Annablume, 2013) e Lepidopt-erophobia (Multifoco, 2013). Atualmente trabalha com poesia, textos curtos e gênero surrealista / gótico.

Sentado sobre uma lápide rachada, apoio minha cabeça no ombro do cadáver de uma bela jovem que me abraça carinhosamente. A mão gigante que nasce do solo aponta o dedo indicador para cima e os ratos riem do coveiro sem dentes que almoça filhotes de coruja. Sua risada boba acorda um homem de cabelos alvoroçados metido em terno e gravata que corre em desespero pelas alamedas de jazigos. Um cachorro segurando com os dentes seus próprios intestinos, ao passar por nós, encara-me e diz suavemente: “camafeu”, e vomita tatus que se enfiam na terra sob o olhar estéril e sorriso falso de reprovação de minha amante seca. Beijo seco. Olhos secos. Vida seca. Quem matou Graciliano? Olho em volta e vejo um dia cinza do mais sublime azul que se possa pintar em colheres de pau. Não se fazem mais doces como antigamente e, do túmulo ao lado, oferecem-me brigadeiros de milho, verdes e quentes, da cor de minha amante. Ela, meu amor, cadavérica, mastiga sonhos e me deixa enjoado, mas beijo-a assim mesmo e seu gosto é azedo. Azeites, azedos, azedumes... Sou gravura em azulejos portugueses e sinto as divisórias em meus ossos. Passe o vinagre, sim? A brisa no cemitério espalha meus dedos. Mais à frente, um velho calvo vestido de branco suporta o peso de uma longa barba feita de crianças e se sustenta com uma pata de camelo. Ele olha para o chão. “Cuidado com as lagartixas”. Corro para as capelas. 1B. Ninguém foi ao meu velório. Minha amante puxa o sino, é hora de partir. Eu me levanto, cumprimento-me e corro para perder-me entre os túmulos de rosas. Onde está o médico? Não posso perder o avião! No coreto, micos devoram abutres e rasgam jornais. O coreto é de madeira da cruz de Cristo, que me observa com suas cores barrocas e suas perspectivas medonhas. Preciso pintá-lo e prendê-lo no quadro de que saiu, mas as escadas são longas demais! Agora que vejo o cemitério através dos vitrais da mansão, costuro lhamas e comungo pregos temendo que minha amada recupere o equilíbrio e consiga subir as escadas. Ela estica o que restou dos braços em minha direção, suplicando meu amor. Seus músculos, ossos e tendões podres lhe dão aspecto de marionete; talvez sejam as teias de aranha que a sustentam e que enchem minha boca de verbos velhos; velhaca literatura. Seus pés maculam de barro o tapete vermelho roto e rasgado. Um coro de sete crianças entoa canções natalinas no saguão mas não distingo as palavras por causa de suas línguas reptilianas. Um espectro de mulher em longas roupas brancas passa por mim flutuando. Sigo-a até o segundo andar onde o Papa me espera e me ignora. Minha amante sobe as escadas de cristal e tudo é luto. Posso ver a água da chuva por entre suas costelas. As maçãs penduradas no teto são de um vermelho vivo e intenso, cristalino. Sinto fome. Bolo de cabelos. Puxo uma flecha de minha aljava e miro na mulher que, morta, quer-me amar e atiro. Tenho um pavor profundo dos quadros da sala. Todos eles falam comigo: amém, amém, amém, amém, amém. O elevador não tem o botão do andar que quero e desce sem parar. “Você vai morrer hoje?”, pergunta-me o pássaro azul que, ao abrir-se, rasgando-se de dentro pra fora, faz surgir um baú velho onde guardo meus brinquedos antigos e pedaços de meus pais. Térreo. Estou de volta ao cemitério. Besouros dançam a valsa dos condenados; anjos tocam suas trombetas; jorra leite estragado dos vasos de flores; a enfermeira me veda a boca com uma fita adesiva. Shhh... Boneca de pano, mamulengo, fantoche. Dorothy mata o leão e o homem de lata desmembra Totó. Acho tudo engraçado não fossem folhas das árvores que cortam minha carne alimentando o espantalho. O espantalho é de palha, espanta e talha. Estala. O cortejo segue pelo cemitério, seguro o caixão que leva uma flauta enferrujada. Cortam-me as pernas e só me resta voar. Vacas em chamas! Só a salada, obrigado. Martelo, prego, martelo, prego, martelo, prego, martelo, prego, martelo, prego, martelo, prego, martelo, prego. Terremoto. Juízo Final. É mentira! Caminho da roça! Olha a cobra! A tudo assisto ao lado de minha amante, meu amor, seca, dura, linda... Aceito! Entre os convidados, a leoa lambe os lábios leporinos lendo Lescaut, lívida, lânguida libido, lírios leves e luminosos lápis-lazúli. Latrina.

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Um fragmento

de YUI

Choveu.

Não o tipo de chuva que ele era acostumado a admirar lá do elevado. Era uma precipitação suja, que lavava a alma pecadora dos altos afortunados e desaguava sobre a cabeça dos comedores de rato, como eram carinhosamente chamados aqueles que viviam por aqueles cantos. Os esgotos, da cidade acima das nuvens, tapavam em sua complexidade de canos até mesmo as luzes do sol, o que tornava, alegoricamente, aquele pedaço de chão totalmente infértil. Dali, ele não podia ver as monstruosas torres lá no alto que, tal qual pontes, ligavam o céu e a terra. A escuridão era uma visita constante, se retirando apenas pelos inconstantes vai e vem das sirenes e iluminação policial. O cheiro invadia as narinas de maneira feroz. Não era possível distinguir os odores que brotavam das arestas mal cuidadas, se fundiam de maneira homogênea, tornando o péssimo em pior, indo de urina à óleo de carro fritando yakissoba. O reino da Dinamarca parecia convidativo quando comparado àquele lugar.

Ele se disfarçava por trás da barba e do rabo de cavalo sedoso, à medida que chamava atenção com o recém adquirido sobretudo largo de detetive caricato. Tentava esconder o rosto à cada passo rápido, olhada irregular ou grito por socorro. Os vendedores cuspiam, puxavam e gritavam ao longo das ruas principais, uma feira a céu fechado. O neon cegava os olhos não acostumados com as propagandas imperativas, os nomes com duplo sentido ou os scanners faciais piratas.

— Prove do verdadeiro amor por alguns créditos, fazemos com que viva a vida de um príncipe da Disney! Ou princesa se preferir, meu chapa. — lhe falou uma mutação ambulante saturada de implantes.

Viciavam-se no melhorar das capacidades humanas, ironicamente transformando-os naquele pedaço de carne pelo resto da vida, distorcendo totalmente a definição da espécie. Negou com um aceno, e continuou. Checava suas coordenadas em seu braço à cada pernada, estava se aproximando do seu destino, e não conseguia conter sua casual ansiedade indômita. Suava.

“CAMPO SANTO”, era o que dizia as letras garrafais sobrepujando a infinita noite da cidade baixa. O corredor era estreito e silencioso quando nivelado ao lado de fora, dando caminho à um apático cubículo. Um balcão de madeira com peças enferrujadas e sobressalentes de naves ou robôs em exibição, tomava todo o espaço da parede e inclusive do chão.

Uma sineta descansava incólume no balcão, quando uma sombra surgiu do outro lado do guichê, assustando momentaneamente o falso detetive. Um senhor com suas marcas do tempo encrustadas na pele, o olhava de volta com olhos artificialmente cibernéticos por entre as baforadas de um charuto. Tatuagens esculpiam seu couro cabeludo desnutrido em conjunto de uma queimadura de 3º grau em todo o lado esquerdo do que deveria existir a bochecha.

— O que isso faz? — perguntou o com rabo de cavalo, apontando com o olhar para o sino circular.

— O que está procurando aqui gaijin? — o velho respondeu, ignorando-o.

— Eu... — pescou no braço. — ...estou procurando uma peça para o YT-1300.

— Qual peça?

— A peça é para medir o eletromagnetismo externo, tenho preferência na marca Tigre ou Carmanti. — respondendo novamente após uma pausa, para avaliar a pesca em seu dispositivo implantado.

— Carbanti? — o velho questionou.

— Isso! Carbanti! Desculpa.

— Você é um imbecil. — tragou — Devo acreditar então que você é o MBakunin?

— Sim, sou eu. — respondeu estendendo a mão para o vazio, sem a retribuição do velho. — Você deve ser o Brooker. — concluiu devolvendo a mão ao bolso.

— Não, sou apenas um de seus fiéis agentes. Ele não pode se desconectar da rede, as informações não param, e o Brooker também não pode parar. Ele é como um tubarão, se ele para de nadar, ele morre. Literalmente até diria.

— Eu... Posso ver a mercadoria?

— Fecha as portas aí atrás garoto. E me acompanhe. — cuspiu.

Ele trancou a passagem da loja como lhe foi pedido. O idoso, abriu parte lateral do balcão forçando passagem por entre parte do entulho. O jovem quando se aproximou, percebeu que, por de trás do mesmo, havia, além de uma cadeira e mais lixo oxidado, uma escotilha entreaberta que descia de maneira circular. Como esgoto escorrendo por um bueiro, desceu atrás do idoso, sendo guiado apenas pelos restos chamuscados do charuto que impregnavam o ar. Decaíram ouvindo o barulho silêncio.

Uma abóboda mal iluminada fazia parte de, provavelmente, algo tão antigo quanto a primeira viga na cidade acima das nuvens. Ali o vento soprava de maneira turva, era possível escutar os passos por cima de suas cabeças. Eles estavam em algum lugar entre a antiga estação de metrô, e o asfalto imundo da parte baixa da cidade. Fractais de telas holográficas surgiam como pop-ups aos olhos do jovem, emaranhados de fios, downloads e informações e pingos caindo do largo teto serviam de adorno àquele esquecido sítio.

— E você não é o Brooker?

— Se eu fosse, eu não estaria negociando com você. — tragou.

O velho foi na frente, puxando uma enorme tela de proteção que jazia no centro do salão. Revelando uma enorme maca, similar à uma mistura de cadeira de dentista e um sarcófago moderno de um faraó. Ao redor um maquinário pesado servia como seus dispositivos periféricos, infinitos cabos e aparelhagens que, em uníssono, serviam como seus asseclas.

— Você pode testar, mas são apenas 10 segundos de demonstração.

— Mas como vou saber se é ela mesmo? Não é bem assim que as coisas funcionam. — indagou.

— Eu sei, fizemos um compilado de algumas das sensações, não é uma demonstração comum. Acredite quando digo, gaijin.

— Eu ainda não acredito, me desculpe. Ele era a artista mais conhecida da terra e entre as colônias, não é uma memória fácil de se conseguir. — aumentou a voz, sibilando desespero.

— Você quer testar essa porra, ou não?! Se você não acredita, qual a sua razão para estar aqui então? Você chegou até o contato do Brooker, não é qualquer merda. Não vou te contar como conseguimos, ou deixamos de conseguir. Não quero saber se você roubou a fortuna de seu pai bilionário para pagar isso, só senta e testa. Meu trabalho é só esse.

— Eu... Nunca fiz isso antes.

— Deita aí. Você pode só se sentir um pouco tonto quando terminar, dá um barato.

Ele se deitou. O barulho que se sucedeu ao fechar das portas na sua frente o fez tremer. Uma lágrima de seus poros atravessou sua espinha, poderia estar trilhando um caminho sem volta. Em sua cabeça valeria a pena o risco, todos aqueles anos de adoração seriam culminados no ápice da personificação, da vivência, de estar ali, por baixo de sua pele, nem que por míseros 10 segundos. Seus olhos se fecharam ninguém. Abriram-se YUI.

Um segundo por sensação. Em um momento estava num palco, cantando para milhares de pessoas que a acompanhavam num coro, aos olhos atentos de paixão, um ícone da luxúria. O carinho nos pedidos de autógrafo na rua, nas fotos e tentativas de abraço ou simples toque, na entidade que agora ela era. Nos sexos encomendados por homens sem rosto, os poderosos desconhecidos, e os ilustres submissos à sua vontade. As drogas coloridas camufladas nos holofotes das festas estapafúrdias que jamais aconteceram. Os troféus comprados pela gravadora, ou votados por fãs e algoritmos incessantes em repetidores na Etiópia. O desgaste. A briga. A depressão. O cinto amarrado no pescoço. O salto para a morte.

Quando a porta se abriu, o jovem saltou para fora da máquina. Não se segurou em pé, caiu de joelhos. Chorando. Vomitou. Misturando às lágrimas o que tinha comido no almoço.

— Era ela. Era ela! — gritou gaguejando e tremendo. Limpou o resto do que sobrara na boca, tentando se levantar.

— Que bom gaijin. — o velho sorriu.

— Vale todo e qualquer crédito... Tudo! Até o último centavo!

 

***

 

Bateu a porta atrás dele, com pressa. Não conseguia segurar o conjunto de emoções que lhe transbordavam o cérebro. Nunca odiara tanto aquele enorme salão quanto agora, um exagero de arquitetura para preencher um vazio incompleto.

— Senhor Treeborn, aonde foi? — a governante se interpôs em seu caminho. — Seu pai. Ele está precisando de você, pode ser seus últimos momentos.

— Sai fora! Agora não! Agora ele quer minha presença? Faça-me o favor... — empurrou a senhora, subindo as escadas pulando os degraus de dois em dois.

— Mas Artur!

Como um viciado à procura do seu fornecedor, ele entrou no quarto. Trancou-se catatônico, acionando a senha por dentro. As telas das notícias personalizadas explodiram à sua volta: “Vídeos do funeral da YUI, veja as homenagens prestadas pelos fãs.”, “Aumente seu pênis em 12 cm.”, “Amanhã será um dia agradável, não se preocupe em voar.”, “Corporação Treeborn em queda vertiginosa no mercado.”. Num aceno do braço, todas colapsaram entre si. Seu hospedeiro o aguardava. Abriu o capacete pela primeira vez, ainda impregnado com cheiro de novo. Conectou com pressa.

— FINALMENTE! FINALMENTE! — babou. Seus olhos fecharam Treeborn, e abriram quase YUI.

Ele estava preso. Algo tapava sua boca. Um odor de sangue seco no metal rondava um nariz que não era seu. Um homem o encarava de frente, utilizando um jaleco vermelho, que originalmente deveria ser branco. Uma coelho o saudava, num sorriso sinistro mascarando o verdadeiro rosto que o observava. Olhou para baixo por um momento. Ele, que não era ele, estava sem roupas, e amarrado à uma maca de maneira que ficasse, imaculadamente, em pé. A pequena sala, assim como o jaleco, era manchada da cor encarnada. O sangue era velho, assim como o medo que lhe subiu os olhos, algo ancestral.

— Tudo bem. — o coelho pegou um gravador macróbio, apertando um botão em sua extensão. — Essa é a memória 17B. Uma tortura de 10 horas ininterruptas, sem deixar ocorrer o falecimento do objeto de teste. No orçamento consta o pacote completo.

— Essa será configurada como uma memória-looping, então cuidado com o que você vai dizer. Pois ele pode ouvir essa mesma ladainha repetidas vezes... Até alguém lhe tirar dessa. — soou uma vez semi-mecanizada de um alto-falante.

— Então vamos nos divertir por um longo, longo, tempo... Coelhinho. — disse o coelho por fim, puxando para próximo de si uma mesa com ferramentas causadoras de pesadelos inimagináveis.

Chorou.

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É estudante de Engenharia, aos 23 anos, e escreve, nas horas vagas, para a Obvious. Já contribuiu para diversos sites de entretenimento como o Pé de Pizza, PushStart, e, atualmente, o Nerd Dendê. Recentemente criou o Nervos de Papel, onde publica alguns dos seus contos, tiras, ilustrações e outras besteiras que rondam sua cabeça incansável.

ismendes@outlook.com

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Gui Mendes

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