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Autores

Morphine Epiphany

Alfredo Alvarenga

Natanael Otávio

Rândyna da Cunha

Rone Cristiano da Silva

Thais Rocha

Revista

Literatura nacional é o que há

Quem me

persegue?

Resenha Avessa

Patrícia Brito

Conto por B. Craus Nantai

nº 11

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Equipe

Editora-chefe

Mayara Barros

Conselho Editorial

Claudia Bianco

Marina Brandão

Mayara Barros

Vitória Pratini

Projeto Gráfico

Claudia Bianco

Marcelle Andrade

Mayara Barros

Victor Vicente

Vitória Pratini

Jornalistas

Claudia Bianco

Marina Brandão

Mayara Barros

Vitória Pratini

Colunistas

B. Craus Nantai

Capa

B. Craus Nantai

Revisão

Claudia Bianco

Contato

 

contato@revistavessa.com

www.revistavessa.com

 

Fone: (21) 992335745

Facebook: /revistavessa

Twitter: @RevistaAvessa

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set/out 2016

A revista Avessa é uma iniciativa independente de graduandos do curso de Jornalismo da UERJ. Os textos divulgados são de inteira responsabilidade de seus autores e não necessariamente refletem a opinião da revista. Não é permitida a reprodução dos artigos e textos aqui publicados.

Nº 11

Set/Out 2016

Editorial

Mais uma vez trazemos essa maravilhosa edição da Revista Avessa. Parabéns aos autores selecionados e aos que se inscreveram mas não foram escolhidos. Todos vocês são extremamente corajosos por colocar o seu trabalho para o mundo ver.

A revista está se aproximando de mais um aniversário. Em outubro, a nossa primeira edição comemora dois anos. Tanta coisa aconteceu nesse tempo e tenho certeza que só chegamos até aqui graças a dedicação da nossa equipe, do apoio dos nossos amigos e do carinho de vocês, nossos leitores.

Que esse próximo ano seja mais um para crescermos e melhorarmos, sempre abrindo espaço para a literatura nacional que é cheia de jóias desconhecidas e paraísos inexplorados.

Muito obrigada a todos vocês!

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Mayara Barros

Editora-chefe

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prosa

12

poesia

poesia

5

7

prosa

15

19

poesia

Ânsia em staccato

Resenha Avessa

Quem me persegue

Final feliz

Alfredo Alvarenga

Floresta mórbida

Natanael Otávio

Morphine Epiphany

Patrícia Brito

B. Craus Nantai

Maria da Manta

O vizinho

Os urubus

Literatura nacional é o que há

Rândyna da Cunha

Rone Cristiano da Silva

Thais Rocha

Mayara Barros

28

coluna

34

coluna

39

coluna

artigo

21

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Ânsia em staccato

Cortante arco
Dilacerando o cello
Em staccato aflito
O fôlego asmático,
sofrido nas sombras
Num distorcido corredor
De luminares avermelhados
Seu salto risca
Tremular de dedos
Frangalho de palpitação


O pulso em beat gritante
Desfalecer de perna sadia
Dilatados olhos
Buscam outro respiro
O perplexo avanço do salto
Piscar de iluminação
Som de cordas arrepiantes
O cello enlouquecido
Crescendo feito gigante
Embebido pela fúria
As portas flutuam
Flamejam


Seus lábios racham de secura
O projetar de uma
Expressionista formação
No limite do corredor
As portas afoitas
Sussurros contorcidos
Expulsos de bocas fantasmagóricas
Seu salto desliza


As unhas da figura
Surgem contornadas pelo vermelho

Cordas eufóricas
Salto paralisado
O contorcionismo da criatura
Mostrando sua pele em
Deformação
Esbugalhados olhos de Nosferatu
Veias em pânico
Escarlate
O terror nas cordas
Pérfidas mãos no
Pescoço
Feito ave enfraquecida
Crack!


Pescoço encerrado
Doce lâmina
Cabeça gotejando
Perdeu o pescoço
Escarlate
Fulminante Orquestra
Salto estático
Cabeça no chão
Criatura devorada
Pelas sombras
Pulmão sem chiado
Arco silencioso

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set/out 2016

set/out 2016

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Morphine Epiphany

souavenger69@gmail.com

Nasceu em 1987, na cidade de São Paulo. Formada em Produção de Música Eletrônica. Possui textos publicados

em revistas, antologias e coletâneas. Seu livro de poesias ‘’Distorções’’ será lançado em 2016.

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Final feliz

Belas formas femininas, desnudas, passavam frente a uma janela. Tranqüila, uma loira deslumbrante cobria sua pele alva com um vestido branco, longo e de corte elegante, olhava-se uma ultima vez diante do espelho, conferia o seu cabelo de brilho dourado, solto por sobre os ombros, abria a caixa de jóias sobre a penteadeira e cobria seu pescoço delicado com uma gargantilha de brilhantes, diamantes reluzentes. E admirava a suas belas curvas no reflexo, sorrindo.

Aquela criatura tão frágil, jamais imaginaria estar sendo observada... A poucos quarteirões, em um hotel barato, em uma janela de um pequeno apartamento às escuras, um homem olhava fixamente para ela, atento a cada movimento, encantado com o deslumbre daqueles movimentos celestiais.

Este homem, taciturno, (o qual designaremos apenas de M*) mantinha tal vigília já há duas semanas... Chegara até aquela pocilga, com pouca bagagem, duas malas na verdade, uma contendo suas roupas, e a outra era um estojo musical, aparentemente para se guardar algum instrumento de corda, um violino ou uma viola clássica.

Sua estadia não despertara qualquer suspeita, era comum ali o transito de pessoas sem destino algum... desafortunados infelizes que se mudavam para a cidade grande a traz de algum sonho, rastros de fortuna em algum pote de ouro no fim de um arco-íris, que por vez ou outra se refletia nas janelas dos arranha céus como um ilusório farol de almas inocentes. Atores de teatro, pintores e músicos costumavam se hospedar e mesmo residir naquele velho edifico... alem da costumeira escoria de prostitutas e traficantes... Os que tinham a sorte de ficar no lado oeste acima do nono andar podiam admirar, o esplendor reluzente do Plaza Hotel a poucas quadras, e almejar um dia estar ali em meio ao luxo e a fama... encontrar o pote de ouro, encontrar um final feliz.

Mas aos olhos desse novo hospede, havia um brilho a mais que ofuscava qualquer Glamur do Plaza Hotel. Este brilho era reapresentado pela beleza de Débora F*. Uma rica e recém divorciada jovem, que gozava de uma vida de luxo a custa do que recebera de seu EX. Um grande empresário do ramo de telecomunicações.

M* com seu olhar frio e incisivo, degustava com prazer os vislumbres que por entre as janelas, tinha daquela a qual apelidou de Vênus... Permanecia horas a observá-la, muito embora isto não fosse necessário, fazia isto por gostar de simplesmente olhar para ela. Nua a desfilar pelo quarto, saída do banho, perfumada com os aromas do amor, ou vestida com suas camisolas sensuais, que em transparência criavam um ar de mistério a cerca da beleza feminina, uma pureza indefesa aos olhares selvagens daquele homem sombrio hospedado no novo andar de um prédio vagabundo. Ocorria porem de na maior parte das vezes Débora se encontrar só, vestida de modo simples, a ver Televisão, usar seu computador, ou a ler algum livro de amor.

Apesar do dinheiro que ganhara, parecia estar sempre com um ar melancólico, solitário, e por vezes chorava, e foi isto que fez nascer no peito daquele que a observava, uma chama de amor, iluminando a escuridão que era aquela Vida. Parecia bobagem, mas em um coração frio e duro nascera o amor, não apenas uma atração física mediante a beleza que num primeiro momento chamara a atenção de seus olhos, mas sim um sentimento que transcendia a carne e os impulsos primitivos.

Talvez, fosse pelas semelhanças das duas vidas... Sofridas na infância, solitárias almas, sem pais, família ou muitos amigos, e pelas armadilhas que o destino fez nascer em ambas às vidas... Infortúnios presentes... Ela casara-se um homem rico, um príncipe encantado, um final feliz... Mas na vida real não existem contos de fada ou finais felizes, o príncipe alcoólatra e adultero a espancava algumas vezes, não de modo brutal como pessoas do povo costumam fazer, mas de modo humilhante como é característico dos homens de poder de dinheiro. Felizmente, ela sair-se-á bem no processo de divorcio, abocanhando uma pequena fortuna que a confortaria por anos a fio, alem da periódica pensão, mas na vida não existem finais felizes, e apesar do dinheiro seu semblante era sempre triste, e isto tocou um coração de gelo de M*.

Ele por outro lado, sabia que em sua profissão não existe espaço para o amor, entretanto esta flor capciosa... Esta fina flor do caos brotara na profunda fenda de sua alma, e se enraizara firmemente em seu ser.

 

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Após alguns dias, ele não agüentou em apenas se contentar a admirá-la à distância, e mesmo indo contra os protocolos de sua profissão ele tentou uma aproximação. Acordou cedo, tomou um banho de água gelada, escovou os dentes, tomou o café da manhã amargo em sem açucara de sempre, fumou um cigarro e a esperou, seguiu-a durante a hora do almoço até um restaurante caro a poucas quadras dali, do lado de fora olhava para ela com ternura, enquanto a via comer sozinha em mesa ao fundo.

No dia seguinte acordou mais sedo, permaneceu imóvel na cama, tendo Débora refletida em sua mente, a imagem dela triste a fazer sua refeição... Tomou o costumeiro banho de água gelada, tomou o café amargo e fumou seu cigarro matutino... Porem, neste dia arrumou-se com mais classe, apanhou as notas de Cem que trazia na bagagem, e rumou para o restaurante caro a poucas quadras do Plaza Hotel. Pedira uma mesa afastada da entrada e esperou. Saboreou uma refeição deliciosa e um vinho importado, três notas de Cem cobriram a refeição... Ainda permaneceu ali, pensando que ela não viria, quando a viu passar a seu lado, vestida com um vestido cinza claro e a sentar-se à uma mesa próxima, com a delicada face a sua frente.

A poucos centímetros, sua beleza parecia ser maior ainda, e mais brilhante... Tal como seu ar melancólico era mais pungente, comeu uma refeição breve e se levantou para pagar. Ele a seguiu, a viu pagar o almoço e partiu... Mas desta vez, o destino fez mais um de seus caprichos articulados e sórdidos, ela esquecera sobre o balcão sua bolsa... Uma deixa divina? Uma conspiração cósmica talvez? M* correu atrás da loira, esquecendo-se totalmente de seu trabalho, levando a mão à bolsa deixada para traz, antes que ela entrasse em um táxi e se fosse.

- Madame deixou isto no restaurante! – disse assustando um pouco Débora.

- Ah! Que susto... Muito obrigada... – Após uma breve pausa. – Eu já não o vi antes?

- No Restaurante sem duvida. Prazer Meu nome é...

- Sou Débora, prazer!

Uma conversa breve, mas importantíssima. Naquela noite, pode observá-la...

Preenchendo o vazio que fazia a falta de sua voz meiga e macia, isto apenas com as poucas palavras que trocaram na saída do restaurante. No dia seguinte, novamente o banho gelado, o café amargo, o cigarro e mais uma vez a espera no restaurante. Mais uma vez ela sentara-se a sua frente. E ao vê-lo, sorriu e disse:

- Obrigada por ontem!

- De nada... Desculpe-me perguntar... Sempre almoça sozinha?

- Já faz cinco meses que sim, e o senhor?

- Há muito tempo faço refeições sem qualquer companhia.

- Posso sentar-se com você? Se você quiser? Assim preenchemos nossos vazios...

Comeram juntos, conversaram, sorriram, como a muitos ambos não faziam, estavam atraídos por algo intimo, talvez por forças superiores. Durante aquele tempo o trabalho pouca importava, o que fazia sentido era apenas que estava na mesma mesa de Débora, desfrutando de sua amigável companhia. Pediram vinhos caros e gozaram de um almoço refinado, e quem de longe olhasse, os tomariam como um casal de namorados ou no mínimo amigos muito íntimos.

Outro almoço no dia seguinte estava agora planejado, ambos partilhariam de novos momentos de alegria. Naquela noite, a culpa por estar traindo o seu trabalho o maltratara, o torturava profundamente, nunca antes havia misturado sentimentos e negócios, mas no raiar de outro dia, depois do banho gelado, do café amargo e do cigarro, estava a rir ao lado de Débora esperando que o mundo, e seus problemas explodissem.

Isso repetiu-se mais algumas vezes... Quando então, um dia ela disse...

- Hoje à noite, tenho um jantar importante para ir, estava quase desistindo, por não ter uma companhia interessante, mas agora que tenho você... Quer dizer – corrigiu sua palavras tento a face corada pela leve e pueril vergonha – agora que te conheci e... em fim gostaria de me acompanhar.

A resposta foi um beijo, ardente... Um beijo apaixonado, selvagem e terno ao mesmo tempo... uma explosão de sentimentos... Após almoço, e um descanso pela tarde, houve o despertar junto com o despedir do sol, o banho gelado, o café amargo e o cigarro. Ligou seu pequeno aparelho de som, e colocou um CD de musica clássica para tocar enquanto se arrumava, com sua melhor roupa, e com os pensamentos voltados para Débora, não os pensamentos de antes, mas os novos, a possibilidade de ir para a cama com ela, tentando esquecer-se de sua amarga

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tarefa.

Aproximou-se da janela, olhou pela lente que diminuía a distancia entre o apartamento de Débora no Plaza Hotel e do seu. A viu nua, vestir-se aos poucos com um vestido branco, embelezando-se para ele... E ele sorriu feliz e satisfeito por saber estar sendo amado.

Um som eletrônico interferiu nesta cena de redenção... O toque de seu novo celular. O sorriso se desfez, em uma expressão fria e seus castelos de sonhos e contos de fadas veio a baixo.

O celular voltou a tocar... Só uma pessoa sabia esse numero... A sua frente seu amor, a bailar frente a um espelho... O celular tornou a tocar... Tinha um trabalho a cumprir... Nunca deixou nenhum serviço sem completar... Sua mente calculou rapidamente, e formulou um sonho, no qual deixava tudo de lado, fugia e vivia um amor como nunca havia sonhado, fugia do país... Seria feliz, iria para a Europa, para o sul da França onde passaria seus dias a amar Débora sobe o calor do sol mediterrâneo, um final feliz como os do cinema... O celular voltou a tocar... Um terceiro som surgiu, seco áspero como um curto jato de vento. Um tiro silencioso. Os cabelos loiros de Débora mancharam-se de sangue, e sem vida ela caiu no chão tingindo seu vestido branco de vermelho.

Na vida real não existem finais felizes...

Alfredo Alvarenga

alfredo.alfredo.alvarenga@hotmail.com

Nasceu em 1988, é formado em História, escreve desde os 14 anos. Publicou em 2009 o livro “Uivos na Escuridão”, com contos de terror, suspense e tragédia. Participo também de outras antologias importantes como: “O Corvo Um livro Colaborativo”; “Contatos Imediatos de Primeiro Grau” e “Seres Amazônicos”. Também possui uma banda de Pós-Punk chamada “Ecos D’Alma”, em atividade desde 2007.

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Floresta Mórbida

Não me lembro de quando e nem como entrei naquela floresta. Só me lembro de estar perdido ali e que o lugar agonizava: as árvores eram como fantasmas e nem os animais vicejavam, eram como sombras do que foram um dia. Arranquei um pouco de capim para observar melhor e ele se desmanchou em minhas mãos.

Meu celular tinha perdido o sinal. Meu relógio tinha pa­rado – não sei se ao meio-dia ou à meia-noite. Só conseguia me lembrar de que ele era importante para mim. Talvez fosse um presente ou uma joia de família. Por algum motivo, eu era apegado a ele – um relógio de ouro cuja beleza parecia ainda mais extraordinária em meio ao horror que o contrastava. Era como um pequeno farol naquela escuridão, acendendo em mim uma tênue esperança de sair intacto daquele lugar.

Comecei a correr. Não poderia permanecer ali por muito tempo, sob o risco de ser absorvido e me tornar um rascunho do que sou – ou do que eu era. Tropecei numa raiz escura, coberta por um musgo que fedia a podridão como tudo ao meu redor.

Estava me sentindo cansado, mas não podia parar de cor­rer. Às vezes eu atolava os pés em terrenos pantanosos, tropicava em raízes, escorregava em lodos – caía no choro. Mas algo me dizia: Enxugue as lágrimas e se levante. A vida é mesmo cheia de obstáculos. Não adiantava eu cair em prantos. Eu precisava seguir em frente, mesmo que num caminho incerto, que não chegasse a lugar algum.

Decidi continuar.

Havia mais alguém ali. Eu estava meio longe e a escuridão do ambiente não favorecia meus olhos, mas, se tivesse que apostar, diria que se tratava de uma mulher.

Aproximei-me com cautela. Ela – era mesmo uma mulher – estava de costas e sentada em um barranco.

Não estou mais sozinho, pensei. Espero que ela possa me ajudar a sair daqui.

Ao perceber a minha aproximação, a mulher olhou para trás. Fiquei assustado. Ela vestia farrapos pretos e cinzas, tinha aspecto fantasmagórico, seu rosto era como o de uma daquelas bonecas de porcelana – que alguém, não me lembro quem, colecionava –; a boca era vermelha assim como seus olhos, que mais pareciam dois rubis.

Percebi que ela estava diante de um precipício. E eu, naquele instante paralisado de medo, logo atrás dela.

― Você tem certeza de que quer parar aqui? – perguntou-me a mulher com uma voz quase sussurrada. – Pois saiba que aqui é o fim.

Ao tentar responder, eu gaguejava e não saía nada.

― Eu espero você se recobrar do choque – disse ela com sarcasmo. – A mim você não precisa temer. – Ela percebeu o meu medo e parecia se divertir com a cena.

Não sei ao certo por quanto tempo permaneci estático, mas, de algum modo, consegui finalmente dialogar com aquela aparição:

― Eu estou perdido e confuso sobre quem sou, como vim parar aqui...

― E?

― Quero sair desse lugar. A senhora – seja lá o que for – pode me ajudar?

― Senta. – Ela apontou um lugar ao seu lado à beira do precipício.

Eu hesitei.

Ela riu.

― Eu não mordo. – E logo se fez séria. – Aqui é tão frio. Dê-me um pouco do seu calor.

Fiquei receoso, mas obedeci. Ela tinha razão quanto ao frio, senti o hálito gelado do abismo pronto para nos engolir.

― Então, a senhora pode me ajudar?

Ela fixara os olhos de rubi em meu relógio.

― Talvez. Toda ajuda tem um preço... Você me daria o seu relógio? É o mais belo que já vi.

O meu relógio não.

― Não posso – respondi. – É importante para mim.

― Não posso. É importante para mim – ela imitou minha fala. – Ele não funciona. Está parado como nós dois aqui. Mas é lindo... Eu também não o daria... Pelo menos deixe-me vê-lo em minha mão, só um pouquinho, depois eu devolvo.

Não tinha outra escolha. Precisava confiar nela.

Retirei o relógio e o entreguei à mulher. O relógio atraves­sou a mão dela – como se fosse fumaça – e caiu no precipício. Enquanto caía, seu brilho ia desaparecendo na longínqua escuridão.

― Veja o que você fez, senhora! – gritei.

― Perdeu o medo de mim, meu jovem? – sua voz agora era fantasmagórica.

― Eu só quero sair desse lugar... – chorei. – Por favor?

― Se é assim, por que parou aqui em vez de continuar a correr?

Lembrei-me do que ela me disse assim que parei ali: “Você tem certeza de que quer parar aqui? Pois saiba que aqui é o fim”.

― Eu precisava de ajuda para sair desse lugar.

― Então, volte a correr.

Ela tinha razão. Eu precisava voltar a correr, mesmo que sem rumo. Talvez eu encontrasse o caminho de volta à vida. Levantei-me pronto para continuar.

― Por que não vem comigo?

― A minha missão é outra, meu jovem. – A mulher se ati­rou no precipício.

Aquilo me pareceu loucura. Mas, então, lembrei que ela já devia estar morta.

― Adeus, senhora – gritei.

Eu corria, caía, levantava e voltava a correr. Às vezes, tinha a impressão de que voltava sempre ao mesmo lugar, aos mesmos medos e ao mesmo horror.

E assim continuei, até ouvir o toque do meu celular.

O sinal voltou!

Atendi. Era uma voz de mulher a me informar que o reló­gio que eu tinha deixado para o conserto estava pronto...

― Você fez bem em trazer esse relógio para consertar, meu jovem, é o mais belo que já vi.

― Senhora? É a senhora mesmo?

Ela já tinha desligado o telefone.

Meu relógio! Lembrei-me que eu tinha ganhado aquele relógio do meu avô. Ele me pedira para que eu lhe contasse uma história e, se fosse boa, me daria o relógio de presente. Isso já faz tanto tempo.

Quando dei por mim, eu já não estava mais naquela floresta mórbida que tanto me assustava...

Eu caminhava no centro da cidade que, naquele momento, me parecia ser a mais bela do mundo.

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Nathanael Otávio

otavionatanael33@gmail.com

Nasceu em Bastos, São Paulo, em 1980. É autor do livro Reconstruções (2016). Publicou os contos O tesouro de John Símile (2013); e Pedaços do Mundo Rasgado – Alanis D. e o Esmerilhão (2016) em ebook na Amazon. É colaborador do site de Cultura Pop CultEcléticos e integrante do grupo de sarau Semeando Poesias.

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Resenha Avessa

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talia. Firenze, mais conhecida como Florença. Gran Caffe Ristorante Giubbe Rosse. Piazza dela Republica. Antonello. Nicola. Duccio. Giuseppe. Turistas. Muitos flertes. Uma turista especial. Aline. Bruna. Sabrina. Karolina. Muito mais que um amor.

Um livro encantador com uma narrativa leve, suave, porém impossível de ser lenta. A primeira lição é bem evidenciada. A vida é sim para ser vivida e, se não for como você planeja, deseja, será como ela tem que ser. Mas VIVA; viva sem reclamar; apenas VIVA.

A estória é narrada por Antonello, um jovem que tem uma vida cheia de malandragem, infiel, sem compromisso e apego. Porém o surpreendente é que, ele não nos irrita e sim nos encanta, cativa muito com suas atrapalhadas, com seu estilo de viver. Não é um personagem para se admirar inicialmente. Todavia alerta aos leitores, o que parece não ser admirável, acaba por ser muito primoroso.

A vida de Antonello não é nada fácil, o histórico triste vem antes de ele nascer, com a paixão arrebatadoras dos pais, fazendo assim a mãe distanciar do Brasil, consequentemente de seus familiares no país. Ao nascer e ser fruto deste amor, Antonello presencia a perda da mãe e, assiste seu pai se entregar em uma profunda depressão alcoólatra.

Assim a existência de Antonello resume-se, viver e conviver com o pai em um minúsculo apartamento Firenze, entre uma garrava e outra de álcool. Ser recepcionista do “ristorante” do amigo do pai Duccio, que acredita e desconfia que ele possa ser melhor do que aparenta oferecer.

Antonello segue com a vida. Hora libidinosa, hora debandada, hora desencanto com cliente, amigos ou mesmo turistas.

A sua rotina vira de perna para o ar, com a chegada da Aline. Ele o galanteador, sempre dono das rédeas, quando o assunto é mulher. Com a Aline a situação muda, o mesmo, surpreende com a dificuldade de entrega da brasileira, ao mesmo tempo em que fica fascinado com a coragem, iniciativa da jovem morena.

Toda sua rotina muda a partir deste momento. Acostumado com relações descartáveis, Aline promete retornar em um ano, e retorna.

Se já estava confuso todo seu sentimento pela ragazza, Antonello se ver em um patamar onde, não consegue mais fazer nada além de pensar na jovem.

Então vem 1966 e o Brasil. Quando o leitor achar que a vida do italiano está para mudar radicalmente. Não tenha dúvida, está sim. E essa, é só uma ponta do iceberg da vida do ragazzo.

O afável do livro é se encantar por lugares onde o protagonista desfila. Na Itália, a Ferenze ilumina toda a obra. No Brasil a realidade do Rio de Janeiro e o frio do Sul seduz qualquer leitor no anos sugeridos.

A narrativa foi uma experiência única, onde encontra-se, velocidade pelos fatos e cenas, ao mesmo tempo, a calmaria de não ter que apreciar cronometrando. Sem separação por capítulos, cada cena proporciona direito de escolha, ou, você continua, ou, você relaxa. Apenas os anos separados 1993, 1963, 1964, 1965, 1966, 1973, 2013.

Sim! O estimador da leitura irá acompanhar o desenvolvimento do Antonello, encontrando um protagonista aventureiro no estilo de viver, mesmo vivendo como o que a vida lhe oferecer. E finalizará com um ser, onde sabe que da existência, a melhor parte é, vitalidade. Cada um sabe dos percalços que tem, o interessante é como sobressair do mesmo.

Antonello, é o malandro que ensina a qualidade na vivencia da sua vida, com leveza que tem que ser. Assim como: Pasta senza e vino é inapropriado; viver sem sabedoria é credulidade com si próprio.

Título: Pasta, Senza e Vino

Ano: 2014

Páginas: 288
Editora: Terceiro Selo

Autor: Eduardo Krause

 

Na Florença dos anos 60, o jovem Antonello Bianchi é um italiano indolente, machista e metido a conquistador. Sua única ocupação é atrair clientes para o restaurante em que trabalha (ou para si, quando for una bella donna). Essa vida de aventuras amorosas sofre uma virada quando ele conhece uma turista carioca, que o leva a atravessar o oceano para compreender o próprio coração. Em tom leve e envolvente, Eduardo Krause apresenta um romance com sabor e graça, os ingredientes da boa literatura.

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Uma pena. Quando me aproximei, notei a aliança com um reluzente diamante em sua mão esquerda. (p.18)

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Patrícia Brito

leiturasplus@gmail.com

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Encontrou-me o amor de todos sem armadura.

E aberto o caminho dos olhos ao coração.

Que de lágrimas são feitas a porta e abertura.

(p.93)

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Literatura nacional

a experiência de lançar um livro na

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é o que há

Bienal de São Paulo

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Foto: Mayara Barros

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Minha

sessão de autógrafos

Foto: Denise Fidalgo

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A Bienal do Livro de São Paulo é considerada um dos maiores eventos literários do Brasil. Milhões de pessoas esperam ansiosamente pelas duas semanas em que poderão visitar os estandes das editoras e conhecer seus autores favoritos. Para os autores, é momento de divulgação, suor e muita energia para aguentar a maratona de vendas. Mas a energia de estar presente como escritora publicada é algo difícil de explicar.

A 24ª edição do evento ocorreu dos dias 26 de agosto a 4 de setembro. No dia 31, apesar de ser uma quarta-feira chuvosa, os corredores estavam cheios. Andar pelo pavilhão do Anhembi era desviar de grupos de crianças em passeio escolar e visitantes preocupados em encontrar o próximo livro da lista.

Além de ser um evento onde as pessoas podem comprar livros (além de comics e jogos que também fazem uma pequena participação), a Bienal conta com diversos outros eventos dentro dos seus vários espaços culturais tais como sessões de autógrafo, e meet & greets com autores tanto nacionais quanto internacionais, palestras, e diversas outras atividades interativas.

Os lançamentos da Editora Illuminare começaram às 16h. O estande da Ler Editorial estava lotado, muitos nomes da literatura nacional tinham seus livros expostos e os autores presentes disputavam a atenção dos transeuntes. Lancei meu livro, Caleidoscópio, e também participei do lançamento da antologia Contos de Fada - Releituras da Realidade, ambos pela Illuminare.

A experiência foi indescritível. Recebi o carinho de colegas autores e de pessoas que estavam me conhecendo ali. Pude, inclusive, conhecer um pouco de vocês, leitores da Avessa, que me deixaram extremamente feliz em passar lá para conhecer esse outro lado do meu trabalho. Além do meu livro, alguns companheiros de editora também estavam lançando seus trabalhos. Tito Prates foi um dos grandes sucessos do dia, com o livro Agatha Christie - From my Heart.

 

Apoiando a literatura nacional

 

É curioso perceber que o horário de lançamento passa, mas o trabalho de divulgação nunca acaba. Depois que passei a mesa para o próximo autor, fui andar pelo evento e, sempre que encontrava um outro autor divulgando o seu trabalho, contava um pouco do meu também. Foi muito encorajador ver tantos escritores nacionais no evento.

Na editora Draco, conheci as incríveis Melissa de Sá (autora de Metrópole – Despertar), Karen Alvares (Reverso e Inverso) e Vivianne Fair (A Rainha Sombria). Todas muito simpáticas e Vivianne fantasia de uma de suas personagens. Trocamos experiências e devo dizer que estar na Bienal enquanto autora vai muito além de vender livros. Os contatos e as amizades que podem surgir de eventos como esse também são muito importantes. Apesar das dificuldades do caminho, pude ver que muitos estão trilhando junto comigo e isso me dá esperanças.

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No estande da Editora Draco, com Melissa de Sá e Karen Alvares

Foto: Denise Fidalgo

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Mayara Barros

may@revistavessa.com

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Sinopse: Um livro criativo, divertido e com ar levemente sombrio onde vários contos de fadas passam a ter um novo desenvolvimento e um final surpreendente.

 

Onde comprar:

www.livrariailluminare.com.br

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Sinopse: Uma coletânea de contos onde as sensações, a criatividade, as cores e os mais profundos sentimentos são expostos em palavras e personagens.

Contos para ler, viver e refletir.

 

Onde comprar: www.naiveheart.org

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Maria da Manta

Uma chama uniforme e sinuosa crepitava num canto do quintal. Dentro da fogueira um bolão negro de cinzas liberava uma fumaça também negra e um odor de carne podre torrada. De pé, próxima à fogueira, estava postada uma mulher. Os olhos da mulher centelhavam o vazio e repetiam o vazio. Nada, jamais, poderia ser encontrado dentro daqueles olhos outra vez.

Um vento gelado levou algumas cinzas para bailar e esparramou o cheiro acre de corpo queimado. Era um cheiro vivo, tão vivo, que arranhou as narinas dela e lembrou o quanto tudo aconteceu rápido.

Era uma tarde de domingo, daquelas cheias de tédio e mocidade presos dentro do espírito. O filho insistia para irem até o riacho que ficava no fundo da propriedade. Ela não queria, pois sabia que ele encucaria de nadar. Relutou durante toda a manhã, deu desculpas, tentou distrair o menino, mas o abençoado era diligente e nada iria dissuadi-lo. Ela fez o filho jurar que não insistiria em nadar, fez ele jurar afirmando que Maria da Manta pega menino que invade as águas onde ela gosta de se banhar. O menino arregalou os olhos e ficou tecendo fios no pensamento, tentando enxergar uma Maria da Manta.

Quando chegaram ao riacho era fim de tarde, de tanto enrolarem, a tarde enrolou-se neles e enrolou o dia. O garoto corria solto cortando os matinhos, se enganchando nas pontas de arame soltas e tropeçando nas pedras. Corria e olhava para o riacho, desejando a água gostosa de se banhar, cristalina e macia. A mãe, que era uma sabichona fingindo desinteresse, via pelo canto dos olhos a ânsia do menino em precipitar-se nas águas com roupa e tudo. Não seria a primeira vez que ele faria isso.

- Henrique! – chamou a mãe severamente.

- Que é, mãe? – o menino atendeu contrariado batendo os pés no chão.

- É que não é assim que se responde a mãe! Já te ensinei. Como é? – ela disse, enquanto procurava no chão uma vara para ameaçar um corretivo.

- Desculpa, mãe! Desculpa! – com voz de arrependimento fingido – Sim, senhora?

Ela jogou no chão a vara fina que tinha encontrado, balançou a cabeça, sabendo que vida de mãe era aquilo mesmo.

- Vem! – disse com um aceno – Sai da beira. Eu te disse que Maria da Manta pega menino que teima e entra no rio dela. Ela adora esse lugar aí.

- Mas, mãe... Eu já banhei aqui muitas vezes. Eu lembro! – ele insistia à fim de convencer a vontade da mãe.

- Sim, meu filho, mas era outra época. Vamos caminhar por ali. Está cheio de jabuticabas. Está vendo o negrume no tronco das árvores? – apontando para um local distante de onde estavam.

Um arrepio frio lhe percorreu todo o caminho da espinha, fechou a blusa apertando-a entre os seios, olhou em volta e não viu sinal de vento, as folhas das copas das árvores sequer se moviam.

- Vem, Henrique!!! – chamou já sem paciência – Está esfriando. Vai escurecer logo!

Dentro dela, aquele tal instinto secreto feminino dizia: “Saia... saia... Apenas, saia, sem olhar para trás”. E ela exprimia seu medo gesticulando apressadamente para o filho vir mais para perto. Comando que ele fingia não compreender. De modo repentino e com um olhar malicioso, Henrique regurgitou uma pergunta:

- Por que, mãe? Por causa do papai?

- Sim. Sim, é por causa do seu pai! – disse a mulher caminhando em direção ao filho.

- Mas eu não sou ele mãe. – o menino choramingava, parado como se estivesse amarrado, mas sabendo que deveria correr.

Este momento fez Aprígia compreender que o filho não era mais aquele menininho bobo e sugestionável, a personalidade do filho era como a do pai: destemida. E este era o maior de todos os perigos. Quando o menino ficou ao alcance da mão, ela lhe pegou forte pelo ombro e apertou, puxando-o para si e machucando a carne do filho.

- Eu te disse que nós vamos pegar as jabuticabas e ir embora, antes que escureça. – ela se abaixou e olhou bem dentro dos olhos dele, com um olhar que fez o silêncio e o conformismo entrarem no menino – Foi Maria da Manta quem levou seu pai e ela me disse que quer te levar também! Você não entra nessa água mais! Já te falei! Vem!

Ela ia a passos rápidos, puxando Henrique. Olhou para onde o sol se punha, sussurrou algo sobre pegarem apenas algumas jabuticabas e seguiu obstinada. Algo realmente estava incomodando a mãe, ele sabia. A mãe não parava de buscar o sol no horizonte, enquanto movia as mãos freneticamente em busca das jabuticabas. O pai morreu há quase um ano, afogado naquele riacho, levado por uma tromba d’água diante dos olhares atormentados da esposa, do filho e de alguns amigos. O corpo jamais foi encontrado e Aprígia tornou-se estranha depois disso. Vivia cheia de comprimidos nas mãos e semblante perdido.

Ele não entendia aquele olhar que viu nos olhos da mãe. Não entendia. Foi deitar com aquele sentimento de estranheza dentro do coração. O sono agitado, o suor escorrendo pelos lençóis, o vento rufando em volta da casa. Um cachorro uivou penetrando em sua dormência, como uma faca pontiaguda adentrado a carne viva. Um feixe de luz entrava pela porta entreaberta. Olhou para o despertador na mesinha de estudos: 3h:01min. O cachorro não uivava mais. Estava quente dentro do quarto, mas o vento rodopiando ao redor da casa indicava que era noite de ventania. Que luz seria aquela? A mãe estaria acordada a esta hora? Fazendo o quê? Abriu a porta devagar, tentando espiar alguma coisa. Colocou apenas metade do corpo para fora e viu a mãe parada, como se olhasse para uma foto, murmurando algo que ele não compreendia. Os olhos dela estavam fechados: sonâmbula. Quando o pai estava vivo, cuidava dela nestes momentos, mas agora era o papel dele.

Henrique chegou à mãe, tirando gentilmente a foto do pai das mãos dela e a conduziu até a cama, em silêncio, como o pai fazia. Ela cochichava e, entre as palavras, o menino entendeu: “Maria da Manta”, repetidas vezes. A mãe agora não tirava essa ideia da cabeça e ele nem mesmo sabia o que era. Assim que deitou a cabeça loura no travesseiro, Aprígia abriu os olhos, despertando calmamente de seu sono acordado.

- O que você está fazendo aqui, filho? – ela perguntou afavelmente, ainda sonolenta e atordoada.

- A senhora estava em pé, de novo. Dormindo.

- Está acontecendo com muita frequência... – refletindo sobre a fragilidade da sua condição.

- Mãe... – com a entonação de quem vai fazer uma grande pergunta – Quem é Maria da Manta?

- Ah, filho... É uma velha história. Deixa isso pra lá...

- Mãe, reponde. – ele pediu firmemente.

Aprígia se sentou na cama, enrolou os cabelos num coque e respirou fundo.

- Não vai desistir?

- Não, mãe. Não vou. Quem é Maria da Manta?

- Sua avó morou aqui neste sítio, a vida toda. Quando eu vinha passar as férias, ela me dizia para não entrar no riacho, porque lá era onde Maria da Manta gostava de banhar e brincar. A vovó dizia que era uma mulher de cabelos negros e sujos, desgrenhados. Os dentes dela eram podres, todos bem grandes, amarelos e pontiagudos, como se precisassem furar a pedra mais dura. Ela tinha muitos dentes na boca, tantos que seria impossível contar. As gengivas eram podres e quando ela ria, um cheiro de carniça de beira de estrada exalava e entrava dentro do espírito de quem estivesse perto. As unhas de Maria eram como estiletes afiados, prontos a rasgar a carne de qualquer um. Na testa ela tinha dois chifres enormes e negros, como os de um bode. Na ponta dos chifres o sangue de um pobre coitado qualquer manchava o negrume de vermelho carmim. Olhar para os olhos de Maria da Manta era encontrar a morte. A pele dela era preta como carvão e brilhava como madeira polida, os olhos cor de labaredas e a boca vermelha de sangue se destacavam naquele rosto de cor tão uniforme. Ela considerava o riacho como propriedade dela e nós não deveríamos entrar lá, porque quando alguém entrava lá, ela fincava as unhas no rosto da pessoa e a retalhava de cima embaixo. Se a pessoa entrasse lá acompanhada, Maria da Manta se escondia, esperava até a noite e ia caçando um a um, pelo cheiro. Às 3h da manhã ela estava na beira da cama, olhando com um sorriso diabólico no rosto, as unhas fincadas no colchão, saliva descendo pelo canto do lábio. Era o momento da refeição. Aquele que ela comesse jamais encontraria o caminho da luz, ficaria para sempre vagando na escuridão da garganta dela. E por ter muitos dentro da garganta dela, ela não fala, apenas ri e grunhe.

- Mas, por que você fica repetindo essa história horrível, mãe?

- Sempre foi história de avó, mas quando viemos morar aqui, seu pai se apaixonou por aquele riacho. No dia em que ele morreu, eu achei que tinham sido meus olhos me enganado, mas hoje eu sei, foi a Maria da Manta que puxou ele pelos pés. Eu vi a mancha negra por baixo dele, enquanto ele se debatia. Eu senti o cheiro dela. Ele foi puxado e arrastado pelos pés. E, como na história da vovó, ela não devolveu ele, comeu cada pedacinho, até mesmo as roupas.

Henrique estava calado. Tentando ver todas as imagens que a mãe descreveu. Ela falou tudo sem hesitar, ela acreditava naquilo. Foi se deitar sabendo que a mãe não estava em seus melhores dias, depois da morte do pai ela tomava muitos comprimidos antes de dormir e, muitas vezes, bebia cachaça depois dos remédios. Gotas de felicidade, ela dizia. Ele teve que se cobrir inteiro com o lençol, a mãe lhe meteu medo.

Aprígia já não sabia onde começava e terminava cada versão. Estava deitada no escuro, tentando esquecer aquelas memórias e visões. No meio do completo breu, uma presença parecia estar vagueando pelo quarto. Os pés estavam descobertos, o melhor seria cobri-los, mas a coberta era muito curta e ela não queria olhar para as sombras. Deveria estar apenas assustada com a história que contou a Henrique, fecharia os olhos, respiraria fundo e o sono chegaria. Sim, faria isso. O pobre do filho era bem mais corajoso que ela. Estranhamente a sensação da presença ia se tornando cada vez mais real. Era o medo se personificando. Só poderia ser isso.

Num fragmento de segundo, que ela não conseguiu distinguir quando, uma respiração ofegante e forte fungou em seus pés descobertos, o hálito quente era também fétido. Ela ouviu um gemido sufocado e alguma coisa sorvendo saliva. O sangue agora havia congelado, a coisa tocava na cama e ela tinha a sensação que era com longas unhas pontiagudas. Pensou no filho, sentiu medo. Era melhor ver logo de uma vez a coisa. Movimentou-se lentamente em direção ao interruptor do pequeno abajur ao lado da cama. Sentiu a coisa se mexer: as mãos, talvez garras, mudaram de posição. A mudança na posição da pressão no colchão demonstrava isso. Acionou o interruptor e olhou em direção à coisa. Na ponta lateral direita da cama, estava ela. Com o queixo negro reluzente encostado no colchão, a baba misturada a sangue escorrendo e molhando o lençol branco de algodão. Rindo com tantos dentes à mostra que ninguém jamais poderia contar. Olhando fixamente para Aprígia, com olhos de labaredas. Era Maria da Manta, espreitando à beira de sua cama. Rindo e lambendo os lábios.

Num piscar de olhos viu quando a criatura correu pela porta em direção ao quarto de Henrique. Aprígia pulou da cama, correu o mais rápido que pôde para lutar pela vida do filho. Quando chegou ao quarto, viu em cima da cama, apenas um bolão embaixo dos lençóis. Correu à dispensa e trouxe cordas. Amarrou o bolão, que gritava e se remexia. Foi arrastando-o para um canto do quintal, perto de onde guardava a querosene para o gerador. Era ela. Maria da Manta tinha comido seu filho. Não ficou nada, nem mesmo a roupa. A coisa pulava, gemia como se fosse uma criança, numa tentativa mais que óbvia de enganá-la, de gerar a esperança que o menino estivesse vivo. Criatura maldita! Levou o marido e agora o filho. A maldita voltou para lhe tirar o resto que faltava. Deixou a coisa retorcendo-se dentro dos lençóis, enquanto buscava galões de querosene. Pareceu ouvir uma voz abafada pedindo socorro. A avó dizia que a coisa fingia ser gente e demonstrava sofrer, quando era capturada. Não podia parar. Tinha que destruir a coisa. Derramou todo o querosene que encontrou sobre a criatura e, sem pensar mais que um segundo, ateou fogo nos lençóis em que seu filho dormia, antes da coisa comê-lo. Maria da Manta se contorceu e urrou o quanto pôde, mas Aprígia não tinha dó. Tinha apenas dois olhos vazios, carregando o nada para dentro de si, enquanto uma pequena mãozinha enegrecida saltava de dentro do bolão.

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Rândyna da Cunha é filha de maranhenses, dona de espírito nordestino. Nascida em 30/12/1983, em Brasília, onde reside desde então. Graduada em letras com habilitação em português/inglês e direito, ambas na Universidade Católica de Brasília. Teve o conto “A gruta” premiado e publicado por intermédio do IX Concurso Literário de Presidente Prudente. Compôs também as páginas da Revista Philos Volume 2#1 com seu conto “Frágil corpo de pomba”.

Rândyna da Cunha

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randynapaula@gmail.com

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O vizinho

A casa estava vazia. E dava calafrios. Não gosto da varanda. Não gosto do terraço. Não gosto de nada.

No entanto, desde que saí do hospital, teimo em visitá-la. Até que um dia, sem entender o por quê, me mudei para casa vizinha. A primeira tem paredes verdes, um canteiro de rosas vermelhas, portas com cantos arredondados e uma piscina no terraço. Minha nova casa é bem menor, paredes descascadas por anos sem pintura, sem flores, portas simples de madeira mofada e janelas de persianas quebradas. Sem terraço. Mas eu prefiro assim.

Através das persianas tortas, visualizo a imponência da casa vizinha. A placa de ALUGA-SE está de costas em relação ao meu ângulo de visão, mas percebia o aproximar constante de interessados no imóvel. Gente de alto poder aquisitivo.

O corretor era gentil, apesar da voz rouca e irritante. Os interessados entravam no imóvel, porém, lá dentro, algo acontecia. Os rostos sorridentes se contrastavam com as feições apreensivas que saíam. Vezes sem conta fazia minhas refeições de frente a janela, vendo o movimento por ali. A TV de quatorze polegadas, fabricada há pelo menos vinte anos, ficava esquecida no rack empoeirado da sala.

Certa vez, um casal veio conhecer o imóvel. O homem usava terno verde e gravata vermelha. A mulher trajava um vestido florido na altura dos joelhos. Torcia por uma brisa mais forte levantar aquele vestido, nem que fosse alguns centímetros. Ao menos, que agitasse seus cabelos longos e louros. Iguais aos da minha mulher. A cretina fez uma viagem e nunca mais voltou. Me acusava de beber demais. Só sabia reclamar. Por um lado, até foi melhor sumir de vez. A provável inquilina loira sorriu para o marido. Com sorte ela poderia virar minha amiga. Se o marido não fosse tão ciumento. Caras casados com mulheres bonitas tendem a ser possessivos ao extremo. Sei disso.

Igual aos episódios anteriores, o casal abriu mão do negócio. Será que o valor do aluguel era tão exorbitante?

Um dia, para meu azar, veio um homem aparentemente solteiro. E fechou negócio. Lembro do aperto de mão entre ele e o responsável da imobiliária como um pacto demoníaco. Eu almoçava macarronada quando vi a cena entre as venezianas. Perdi o apetite. Com tantas mulheres que passaram pela casa, justo um cara solitário fora se instalar ali?

O pesadelo se concretizou quando ouvi o caminhão da mudança. O cara não tinha muitos pertences. Apesar do sol escaldante, trajava sempre roupas escuras e fechadas. Um sobretudo preto que parecia mais quente que meu melhor cobertor de lã. Além disso, o sujeito não tirava as mãos dos bolsos. E para completar o quadro, óculos escuros.

Muito bem, como havia um terreno vazio do outro lado do casarão, eu era o único vizinho. Deveria ir até lá dar as boas vindas? Talvez ele me convidasse para entrar e tomar uma cerveja. Ou algo mais forte. Ele deve ter perguntado sobre os moradores da vizinhança. Solteiro, isolado do mundo. Motivo? Fora chifrado, talvez, e se isolou por vergonha. Ou um ex-presidiário tentando se regenerar. Ou pior: um serial killer procurando refúgio antes do próximo ataque.

As horas passavam até somarem dias e esses, uma semana. Não ouvi o nome do novo vizinho, nem me atrevi a puxar conversa. Quando o via sair, eu me trancava para evitar o inconveniente “bom-dia”. Qualquer contato que prenunciasse uma futura amizade. Antes que me julguem, friso que não tenho medo dele. Não é uma cara de poucos amigos ou roupas fechadas e escuras que me fazem tremer. Apenas não sou um homem de fazer amigos.

Por outro lado, não posso dizer o mesmo do figurão ao meu lado. Bastou se instalar, que as visitas brotaram como ervas daninhas. Quase sempre exemplares femininos bem aprazíveis. O cara devia ser viúvo ou um solteirão aproveitando a vitalidade. Aparentava uns quarenta anos, cabelos curtos, parcialmente grisalhos. Sim, acho que ainda dá conta do recado. Muitas mulheres se sentem atraídas por homens mais velhos.

Entre uma refeição e um cigarro, decidi que não podia passar meus dias espionando-o. Achei melhor deixar a vida promíscua do vizinho de lado e cuidar de minha pessoa. Decidi então ativar os circuitos da TV. Um filme policial era reprisado. Assisti até o sono me vencer. Se roncava ou não, foi irrelevante.

O vizinho abriu a porta para uma mulher alta de vestido curto. Recebeu-a com um sorriso, um leve aperto de mão e um beijo no rosto. O cavalheiro convidou-a a entrar. Papearam bastante. Em certo momento, um grito. A mulher esgoelou. O berro foi murchando aos poucos. Droga, a vítima fora sufocada. Será que ninguém ouviu? Eis a razão do indivíduo preferir o isolamento. Assim, não haveria testemunhas de seus crimes.

Acordei pingando suor. A TV fora de sintonia. O som de estática irritava meus tímpanos. Tudo fora um sonho. Ou nem tudo. Desliguei o aparelho e me toquei que ainda não tinha amanhecido. Desprovido de relógios, apenas deduzi ser umas cinco da manhã. Cambaleando com um gosto amargo na boca, mirei o mundo exterior pela janela da sala. Quem diria isso? Fiquei chocado com a cena: uma mulher saindo da moradia do vizinho.

Dezenas de perguntas vagavam a mente. Durante o sono, eu teria escutado aquela mulher gritando de verdade no interior do lar daquele homem misterioso? Ou o grito era do filme que eu assistia? A falta de respostas me deixou apreensivo. Tentei deixar o fato de lado, mas era impossível. O sonho era real. Alternava minha atenção visual entre a televisão e a janela e o estômago com lanches prontos e álcool.

Saía de casa apenas para comprar meus suprimentos. Fazia isso no horário de menor movimento. Porém, logo as economias chegariam ao fim. Eu precisava de dinheiro. Ou quem sabe um emprego. Quem daria trabalho a um cara de trinta anos sem experiência alguma, sustentado pela mãe? Ela pagou duas mensalidades adiantadas pela casa e todas as dívidas do hospital que me internou. Fui diagnosticado com...com...bem, não consigo lembrar. E o nome dos remédios menos ainda. Caixinhas com tarjas pretas embrulhadas num saco plástico, intocadas no meu quarto.

Quis me exilar da família, então proibi as visitas de mamãe. Logo, ela me enviava a grana pelo correio. Recebi dois envelopes num intervalo de duas semanas, depois...nada. As despesas aumentavam. Cerveja já não tinha. Fiz o favor de perder a carteira de identidade, agora talvez nem queiram me vender. Lei idiota.

No período de um mês, perdi a conta de quantas mulheres frequentaram a casa do vizinho. A maioria via entrar e não sair. Decerto iam embora de madrugada, como a primeira garota que vi.

Tudo ia mal até o som de pancadas ecoar pela sala. Aí ficou pior! Puxei o cabo da TV para silenciar o ambiente. Era noite. TOC, TOC, TOC. Minha coluna congelou. Os cabelos da nuca se arrepiaram. O barulho era real. E insistente. Droga! Por mais que eu quisesse me esconder, um indivíduo vem incomodar. Sabia que alguém morava na casa mais feia da rua, justamente ao lado da maior e mais luxuosa. Avisei a mamãe para não me visitar. Mas se fosse a velha, já teria me chamado pelo nome. Então ouvi, e quase tive um infarto:

- DEMÓSTENES? ESTÁ AÍ?

Eu devia estar sonhando de novo. O simples motivo é que a voz era masculina. E podia jurar que se tratava do vizinho. Como o tarado cretino sabia meu nome? Ah, ele deve ter visto alguma carta que recebi de mamãe. A caixa do correio ficava a uns dez metros da porta de entrada, na calçada. Qualquer pedestre teria acesso a correspondência. Mesmo se aquilo tivesse cadeado. Agora a ficha caiu. Talvez eu tivesse recebido mais envelopes com dinheiro, mas pegaram da caixa do correio antes de mim. Esse tipo de carta deveria vir diretamente em mãos e eu assinaria um comprovante de entrega. Só que mamãe era ingênua demais em botar cédulas em envelopes pardos como se fossem figurinhas de um álbum que se quer completar. Pelo menos me ajudou nas primeiras semanas.

Aguardei a desistência do invasor. Ele repetiu meu nome, ainda mais alto. Sua sombra se moveu por trás da porta e algo passou por baixo dela. Passado o perigo, fui ver. Para minha surpresa, era nada menos que uma fita cassete, dentro do tradicional estojo plástico. Caramba, depois da invenção do CD, esse objeto se tornou completamente obsoleto. Não tem tanta fama como os discos de vinil para cair na graça da geração atual.

No meu quarto havia um rádio gravador empoeirado. Após desligar a TV da sala, tentava relaxar com umas músicas da FM, antes de dormir. Isso quando não apagava no sofá mesmo. Introduzi a fita e pressionei o PLAY. No início ouvi apenas chiados, mas aos poucos, uma lamúria feminina fez-se entender. Uma mulher implorando pela vida.

- Por favor, não faça isso! Eu juro que não falarei nada e nem vou fugir. Só quero que me deixe em paz!

Então um baque, seguido de um grunhido gutural e um ruído de queda, misturado com respiração ofegante. A respiração do agressor, no auge da adrenalina e fúria, ao ver o resultado de seu golpe final. Mesmo com a baixa qualidade do cassete, eu senti a dor da pancada e imaginei sangue e massa encefálica sendo expostos como atração ao público psicopata.

Qual mente doentia me enviaria um áudio de um ser humano sendo torturado?

O pior ainda vou falar. Reconheci a única voz da gravação: minha mulher. Aí está o quadro geral da situação. Meu vizinho a matou e teve a ousadia de gravar tudo e me entregar em mãos. Talvez ela me procurou na casa de mamãe, recebeu o endereço daqui, mas se enganou de número. O vizinho a convenceu a entrar e fez o serviço.

Sem celular ou telefone fixo, ligar para a polícia e fazer uma denúncia estava mais difícil do que encarar pessoalmente o problema.

Escondi uma faca sob a jaqueta e parti para desafiar o criminoso. Se ele tentasse algo, eu o cortaria a cabeça. Ele certamente está me esperando. Ao me aproximar do jardim de rosas a frente, ouvi um latido. Caramba, o cara arrumou um cão para me atacar se eu reagisse, só pode ser isso. Bati a porta três vezes. O figurão, sempre de roupas escuras e fechadas, saiu. Pela primeira vez o vi a menos de meio metro de distância. Apesar de parecer bem mais velho que eu, também parecia mais forte. Porém, não me amedrontaria. Fui direto ao ponto, sem formalidades:

- Quem é você e por que me entregou aquela fita?

Ele se afastou para o lado e fez um gesto, me convidando a entrar. Eu não daria esse gosto tão rápido, mas acabei vendo o interior da casa. A beleza da sala de visitas era suntuosa. Sofás de couro, cortinas de renda, tapetes felpudos, um lustre cheio de pedras que pareciam diamantes, móveis da mais fina madeira e ao fundo uma escada em espiral cujos corrimões reluziam a ouro. Eu não me atreveria a entrar na casa de um assassino se eu não visse no centro do sofá de três lugares uma senhora frágil e desamparada. Ela me olhou com simpatia e não aguentei. Entrei e me ajoelhei a seus pés:

- Mamãe, o que está fazendo aqui?

Ela apenas ocultou o rosto, em prantos, escondendo-o sob os fios longos e brancos. Será que o homicida que me convidou teve coragem de estuprá-la? Ele começou a se explicar, me dando o choque de realidade:

- Há mães que fazem tudo pelos seus filhos... Até acobertar crimes. Tua mãe, Demóstenes, nos cedeu a fita cassete que eu te mandei. Num de seus surtos psicóticos, você matou tua mulher a golpes de machado nesta mansão na qual morava e enterrou o corpo no terreno dos fundos, onde nosso São Bernardo está farejando o local exato, com minha equipe. Claro, eu não tinha certeza que o corpo está aqui, só sabia que o crime ocorrera aqui. E por isso ninguém queria alugar a casa. Você e sua mãe fugiram e ela te internou numa clínica psiquiátrica, onde prometeram curá-lo e apagar suas lembranças. Mas o passado o atraiu de volta e eu sabia que a gravação que você mesmo fez o fisgaria de jeito. Só pude agir quando soube o paradeiro de tua mãe. Rastreamos a mulher pelos envelopes de dinheiro que ela te mandava. Tomei aqui o depoimento de várias mulheres que a conheciam, nos mais variados horários. Sou um detetive bem discreto e creio que um tanto intimidador. Agora, deixarei que a justiça decida o destino de ambos.

Apenas pensei tirar a faca da jaqueta e cortar meu pescoço. Lembrei do meu ciúme, os espancamentos, a submissão da vítima, agora redescoberta sob a terra da minha ex-propriedade por um rastreador de quatro patas, onde eu vivia uma fantasia de luxo, recheada de drogas e álcool, financiados pela mãe.

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“Sempre gostei de escrever. Comecei criando pequenos livros didáticos na infância e manuais dos jogos que eu desenvolvia. Foi ao fim da adolescência que parti para histórias em cadernos de brochura e de 2006 para cá no PC. Já tenho um livro completo no Wattpad e pretendo um dia investir num curso de escrita”

Rone Cristian da Silva

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ronecsilva30@gmail.com

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Os urubus

Sempre tive curiosidade de saber qual seria minha reação ao ver um cadáver. Não em um velório, é claro, mas daqueles que se encontra por acaso, ensanguentados, machucados, em posições estranhas. Nos filmes as mulheres sempre gritam, como se fosse o maior trauma da vida delas. Algumas delas também vomitam (alguns homens também o fazem, é bom lembrar), como se fosse demais até para seus estômagos. Se a vida imita a arte, então minha reação só poderia ser uma das duas, muito embora eu sempre gostasse de pensar que era mais forte do que isso, que eu era feita de um material mais resistente.

Mas mesmo com todas essas conjecturas, eu jamais poderia ter imaginado qual seria minha reação de fato.

Tudo começou um dia no meu trabalho. Estava inocentemente sentada no refeitório, sozinha com meu almoço, quando um urubu pousou à frente da janela aberta. Congelei de medo. Ele era enorme e preto e seus olhos inteligentes e maus pareciam me dizer que ele sabia muito bem que eu estava ali, e que isso não significava absolutamente nada para ele.

A janela estava aberta e eu entrei em pânico. E se ele entrasse? O que diabos eu faria se um urubu entrasse no refeitório? Como poderia espantá-lo?

Recolhi minhas coisas o mais calmamente possível, sem querer alarmar a criatura. Levantei-me e segui para a sala ao lado. Lá as janelas estavam todas bem fechadas, e me senti segura de novo. Até dois segundos depois quando (juro por todos os deuses que foi isso mesmo que aconteceu) o urubu apareceu na janela. A coisa estava me seguindo.

Voltei apressada para o refeitório e qual não foi minha surpresa ao ver dois urubus na janela. Foi demais para mim. Fui correndo para o elevador e comi na minha mesa mesmo, absolutamente aterrorizada.

Desde esse dia, as criaturas não me abandonaram mais. Passei a manter minhas janelas sempre bem fechadas, mas eles continuavam me visitando, parando na beira do prédio, aqueles olhos completamente pretos sempre me encarando. Fiz várias pesquisas na internet e todos os fatos sobre urubus apenas me deixavam mais nervosa. Você sabia que urubus não produzem nenhum som? Pois é, eu sei...

Foi então que os sonhos começaram, sempre iguais, noite após noite. Eu corria por uma estrada de terra. Os pássaros me seguiam voando, silenciosos. Até que eu tropeçava e caía em uma vala na terra. Eles vinham em minha direção e eu tapava o rosto, tentando me proteger. E sempre acabava assim.

Pouco a pouco, as pessoas na minha vida começaram a desaparecer. Primeiro foi meu irmãozinho, e não importava o quanto eu perguntasse para minha mãe onde ele estava, ela nunca me respondia. Depois foi minha melhor amiga. Meu chefe e todos os meus colegas de trabalho.

A empresa parecia funcionar perfeitamente, mas não havia ninguém ali, apenas um barulho incessante de dedos batendo em teclados e a iluminação artificial das telas dos computadores. Saí de lá correndo e nunca mais voltei. O que estava acontecendo? Por que estavam todos sumindo? Para onde estavam indo? Por que estavam me deixando sozinha?

Não dormi mais. Tinha medo do sonho que sabia que viria me visitar. Deixava as cortinas bem fechadas – também não queria ver minhas duas sentinelas silenciosas.

Foi quando minha mãe sumiu que comecei a considerar que talvez eu estivesse enlouquecendo. Não havia outra explicação. O mundo estava vazio. Era apenas eu e os dois pássaros. Eu e os pássaros. Os pássaros e eu. Céu azul. Dois pontos negros. Eu no chão. Sozinha. Sozinha. Sozinha.

Quando ia acabar? Eu só queria sair.

Gritei até meus pulmões arderem.

Som de vidro se quebrando.

O vento noturno balançou a cortina. As duas criaturas entraram e pousaram na minha cama. Gritei mais alto. Outro vidro se quebrou. Os urubus voltaram para o ar e voaram em minha direção, me pegando cada um em um braço e me carregaram para fora, pela janela quebrada.

Tentei me debater, fazer que me soltassem, mas foi em vão. Eles só me largaram quando chegamos em uma rodovia deserta, perto do local onde eu costumava trabalhar, antes de todos sumirem.

Os urubus pousaram em uma árvore próxima, e voltaram a me encarar. Aproximei-me de onde eles estavam, e foi quando eu vi. Meu primeiro cadáver. Eu não gritei, nem vomitei. Cheguei mais perto, para ver melhor. Era uma moça, mais ou menos da minha idade. Tinha sangue na parte da frente de sua blusa branca.

Voltei minha atenção novamente para seu rosto, e então eu gritei.

O cadáver era meu.

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Thais Rocha

Thais Rocha é formada em Letras Português e Grego Antigo pela Universidade de São Paulo. Sonhava em ser escritora desde os 10 anos de idade, quando começou sua primeira fanfic. Tem um romance (Tykhe, idependente, disponível na Amazon) e dois contos (agora três!) publicados: “O fator John Green” (Revista Avessa, nº 6) e “Caçada” (Coletânea Trópicos Fantásticos, também disponível na Amazon). Saiba mais em: https://rochathais.wordpress.com/

thati_rocha@hotmail.com

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set/out 2016

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Sobre a Revista

É uma revista digital de jornalismo literário que abre espaço para escritores iniciantes divulgarem seus trabalhos e entrarem em contato com o mercado literário, que é representado pelas grandes editoras, além de crescerem em sua arte.

mar/abr 2016

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A escolha dos textos

Cada edição será construída em cima de um tema. Os textos a serem publicados serão escolhidos pelo Conselho Editorial, com base nas regras indicadas no edital publicado no site.

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