Resenha – Morangos Mofados
Bianca Camargo de Lima
O caráter colossal que as palavras escritas parecem tomar é intrigante. Contratos garantem que o que a boca proliferou seja cumprido, assim como cartas de amor expressaram o que os lábios não tiveram coragem de dizer. Entre a profundidade e a leveza, encontra-se Caio Fernando Abreu. Autor gaúcho, Caio F. foi, além de escritor, jornalista e dramaturgo. O “além” anterior parece desnecessário, já que a fonte principal de toda sua produção foi a mesma: as palavras. Circulando em diferentes linguagens, o autor é solidário ao leitor. Entre conversas e reflexões, ele mostra que crises aparentemente pessoais podem também ser descritas e vividas por outros. A identificação que o escritor proporciona faz de sua obra mais que um livro, torna-a um espelho. Considerando sua vasta produção, é injusto escolher apenas um destaque. Para fim da resenha, no entanto, tenta-se amenizar o ato ao escolher “Morangos mofados: contos”, tido como melhor livro de 1982 pela Revista IstoÉ. Obedecendo ao critério de organização dada pelo autor, analisam-se a primeira, segunda e terceira partes, sendo elas O mofo, Os morangos e Morangos mofados.
O desejo de consideração do outro, de afeto, de atenção, de amor, em suma, traz a sensação de vazio interno. A procura eterna e insaciável em ter as vontades atendidas pode gerar mais dor do que compensação. Como visto nos contos dessa primeira parte, em especial “Terça-feira gorda”, o amor sem rótulos não será totalmente apreciado enquanto outros continuarem a enquadrá-lo e a desdenhá-lo. A questão não passa pela vontade de aceitação social. O problema consiste na intimidação e repressão violentas que a sociedade pratica. O mofo cobre e estraga aquilo que um dia já foi belo e apetitoso.
Ligado à ideia de sedução, o morango simboliza, nessa segunda parte, o desejo virtual. Não significa dizer que ele não tenha existido na parte anterior, foi, inclusive, encarado de forma mais física. A fase posterior, no entanto, encara o desejo como algo que vai desde o romance à própria vontade de tomar a liderança de suas próprias ações. Como visto em “Sargento Garcia” e em “Fotografias”, o desejo encontra-se muito mais no campo idealizado. Justamente por não se prender à forma material, como em “Aqueles dois”, o amor não é atingido pelo mofo que reinou na fase inicial.
A última parte é o conto-título, a síntese dialética dos anteriores. A ânsia carnal não matou ou foi rendida por idealizações. Ao final da história, oferece-se uma solução concreta ao dilema. A
tentativa de união entre os dois polos não garante a ausência da dor ou a presença da felicidade. Garante, todavia, um final positivo ao livro que percorreu a saga dos temores.
É com esse incentivo final que Caio encerra o percurso. É com ele também que se deseja encerrar a resenha, prestando homenagem a um artista que se foi há exatos vinte anos. Para todos os ensinamentos deixados pelo mestre, responde-se apenas um esperançoso “sim”.
Sobre o Autor:
Em 1973, querendo deixar tudo para trás, viajou para a Europa. Primeiro andou pela Espanha, transferiu-se para Estocolmo, depois Amsterdã, Londres — onde escreveu Ovelhas Negras — e Paris. Retornou a Porto Alegre em fins de 1974, sem parecer caber mais na rotina do Brasil dos militares: tinha os cabelos pintados de vermelho, usava brincos imensos nas duas orelhas e se vestia com batas de veludo cobertas de pequenos espelhos. Assim andava calmamente pela Rua da Praia, centro nervoso da capital gaúcha. Em 1983 transferiu-se para o Rio de Janeiro e em 1985 passou a residir novamente em São Paulo. Volta à França em 1994, a convite da Casa dos Escritores Estrangeiros. Lá escreveu Bien Loin de Marienbad. Ao saber-se portador do vírus da AIDS, em setembro de 1994, Caio Fernando Abreu retorna a Porto Alegre, onde volta a viver com seus pais. Põe-se a cuidar de roseiras, encontrando um sentido mais delicado para a vida. Foi internado no Hospital Menino Deus, onde posteriormente veio à falecer.30
Um comentário
nythamar
Excelente resenha, informativa, elucidante e cativante.