Resenha – Flores
Ano: 2015 / 272 páginas
Idioma: Português
Editora: Companhia das Letras
Uma história inquietante sobre o amor, a memória e o que resta de nós quando perdemos nossas lembranças.
Um homem sofre muito com as notícias que lê nos jornais, com todas as tragédias humanas a que assiste. Um dia depara-se com o fato de não se lembrar do seu primeiro beijo, dos jogos de bola nas ruas da aldeia ou de ver uma mulher nua. Outro homem, seu vizinho, passa bem com as desgraças do mundo, mas perde a cabeça quando vê um chapéu pousado no lugar errado.
Contudo, talvez por se lembrar bem da magia do primeiro beijo — e constatar o quanto a sua vida se afastou dela —, o homem decide ajudar o vizinho a recuperar todas as recordações perdidas. Em seu livro mais recente, o português Afonso Cruz apresenta uma bela reflexão sobre o amor e a memória.
Obra e Autor
Flores trata-se de um livro que, apesar do número de páginas, oferece uma leitura muito rápida devido aos capítulos curtíssimos. Segue a história do Sr. Ulme, um idoso que perdeu as memórias afetivas recentemente. O narrador-protagonista, jornalista e vizinho seu, resolve ajudá-lo a recuperar o seu passado ao mesmo tempo em que tenta fugir dos próprios problemas familiares.
Esse, juntamente de Jesus Cristo bebia cerveja é um dos dois livros compostos completamente de palavras pelo autor português Afonso Cruz. Até o momento, suas outras obras, como Para onde vão os guarda-chuvas e A boneca de Kokoschka, envolvem ilustrações realizadas por ele próprio, num amálgama artístico que reflete a sua inclinação multidisciplinar: além de escritor e ilustrador, Afonso Cruz é também cineasta de animação e músico.
Enredo
Kevin é um jornalista apático que, tendo perdido o pai recentemente (o primeiro capítulo de Flores cobre a cena do velório), vive em Lisboa uma rotina de “beijar a esposa como se arrumasse a cama.” Sem nada de instigante em sua vida, divaga sobre as emoções que sentia no começo do casamento, e como a vida parecia então mais interessante.
Enquanto ainda sofre o luto pelo pai, Kevin resolve, certa manhã, convidar seu vizinho, o estranho senhor Ulme, que sempre carrega uma chave ao pescoço, para tomar um café. Este último aceita e, uma vez na casa de Kevin, pega de uma das revistas pornográficas que o jornalista guarda na sala e tece o curioso comentário de que nunca viu uma mulher nua. Kevin fica intrigado com tal afirmação, especialmente vinda de um senhor tão idoso. Acaba descobrindo, pouco depois, que Ulme sofreu um aneurisma recentemente e perdeu todas as memórias afetivas, ou seja, ele não se lembra de nenhuma pessoa importante, positiva ou negativamente, na sua vida. Kevin, então, pressionado pela rotina e pela distância emocional cada vez maior que o separa da esposa e da filha Beatriz, a qual o flagrou traindo a esposa na própria casa, decide ajudar o senhor Ulme a recuperar a memória, iniciando uma rigorosa investigação sobre o seu passado.
Visita a vila onde nasceu Ulme e recolhe relatos de pessoas que o conheceram em sua juventude. Todos distintos, todos contraditórios. Ulme é um santo para alguns e um demônio para outros.
Sem conseguir entender o quebra-cabeça que forma o antigo Ulme, e após diversas brigas por motivos fúteis, como terem comido a torrada de Kevin num café-da-manhã, ou o fato de deixarem um chapéu sobre a cama de hóspedes (o que vai contra as superstições de Kevin), o jornalista é assolado por mais uma perda: Clarisse perde o emprego e o abandona, levando a filha embora. Entre sessões de conversa consigo mesmo enquanto evacua no banheiro, e rompantes de nervosismo do senhor Ulme ao ver qualquer notícia de tragédia no jornal, Kevin tenta manter a sanidade intacta enquanto tudo o que é importante vai desaparecendo de sua vida.
Enquanto o velho vai sendo reconstruído, o jovem nada faz para impedir a própria destruição.
O senhor Ulme vai ficando cada vez mais inquieto, sem entender todas aquelas tragédias noticiadas diariamente nos jornais, e enquanto isso Kevin desvenda mais e mais mistérios acerca do primeiro: em juventude, Ulme juntou um mutirão de pessoas para lavar os pés de todos os moradores de rua – tal como Jesus fez –, bem como das prostitutas de um bordel. Por outro lado, Kevin soube, de outras fontes, que Ulme convidou todos os garotos da vila para assisti-lo desvirginar a moça mais cobiçada do lugar: Margarida Flores. Para além disso, Kevin também ouve que Margarida foi a única mulher que Ulme amou na vida.
E que a sua ex-esposa Clarisse o traía há dois anos, antes de largá-lo.
Tudo o que Kevin descobre sobre Ulme não faz sentido. Os relatos se juntam para pintá-lo como um santo e como um demônio. Teria sido os dois ao mesmo tempo?
Conforme o tempo passa, Beatriz, a quem a mãe leva para visitar Kevin nos fins de semana, passa a conversar mais – mas apenas com Ulme. Kevin observa a filha se desenvolvendo, enquanto recebe dela apenas silêncios e respostas monossilábicas para tudo.
Quando o jornalista finalmente consegue contatar a famigerada fadista Margarida Flores, ela conversa com ele sobre tudo: sobre música, sobre a ditadura que assolou Portugal, sobre passagens marcantes da sua vida. Nada, porém, sobre Ulme. Recusa-se a falar dele. Kevin insiste, mas ela se vai.
Algum tempo depois, com mais informações a respeito de Ulme, levanta-se a questão: para que serve aquela chave que ele sempre carrega ao pescoço? Kevin decide levar Ulme ao vilarejo onde passou a juventude para, juntos, descobrirem que prédio a aquela chave abre, e assim findar o mistério que ronda Ulme de uma vez por todas.
Linguagem e Estrutura
Os 95 capítulos não numerados de Flores são em sua maioria curtos, tendo entre uma e três páginas, com poucas exceções a exceder essa margem. A maioria dos capítulos trata de apenas uma ou duas cenas, dentro de um mesmo espaço e tempo. Apesar da enorme preferência do autor pelo discurso direto nos diálogos, há passagens de discurso indireto que em nada interferem no ritmo e nem na experiência de leitura.
Como vantagem do narrador em 1ª pessoa, Afonso Cruz usa e abusa de divagações e questionamentos filosóficos e existenciais, seja nos monólogos de banheiro de Kevin, seja em situações outras. O cuidado de relacionar cada detalhe de alguma maneira ao título é visto na integralidade da obra, e isso tudo sem precisar de uma prosa desnecessariamente complexa. É quase como se o autor se esforçasse para dar aos leitores um livro que eles sintam vontade de ler até o final com o mínimo de esforço aplicado na leitura, o que não exclui um grande exercício psíquico e moral conforme passam-se os capítulos.
Personagens com características bem definidas e antagônicas formam o grosso do livro: um jornalista e um homem que odeia o que vê nos jornais. Uma fadista nem um pouco saudosa da juventude e um jornalista cuja vida foi pelo ralo antes da velhice chegar. Uma criança ganhando todo o conhecimento do mundo de um idoso. Cada personagem contrasta de uma maneira ou de outra com todos os outros. São esses contrastes que reforçam a estrutura do livro, mostrando como as miudezas são tão importantes quanto os grandes problemas da humanidade: capítulos curtos e frases de efeito no momento certo valem mais do que excesso de palavras.
Bem Me Quer, Mal Me Quer: Balanço da Obra
Flores é um romance de leitura fluída e ritmo rápido, mesmo fora das cenas mais dramáticas. Se por um lado o livro acerta em cheio ao nos trazer personagens complexos como Kevin, Margarida e Ulme, por outro, peca por de certa forma “abandonar” personagens com algum potencial no meio do caminho. Um exemplo disso é a tal de Carla, sobre a qual Kevin tece um comentário no primeiro capítulo, mas que nunca mais é mencionada ao longo da obra, deixando no leitor a dúvida: quem é Carla?
Apesar disso, o livro cumpre o que promete no título, e vai “desabrochando” conforme a leitura prossegue, revelando cada vez mais profundamente o interior dos personagens que formam o foco da história, deixando, ao fim, um perfume doce no ar.
Um desejo de quero-mais, mas um conhecimento de que a narrativa terminou exatamente onde deveria terminar.
Concluindo
Quando do planejamento desta resenha, a pergunta final seria: “como Flores pode ser relevante para o leitor brasileiro?”
Talvez ela possa ser invertida: como Flores pode não ser relevante para o leitor brasileiro?
Sendo um livro que trata da memória, é importante encará-lo como um exercício de reflexão tanto sobre a memória pessoal como a memória de massa: a identidade de um país, por exemplo.
Quando o senhor Ulme perde sua memória, ele torna-se frágil, incapaz de dizer o que é verdade ou mentira a seu respeito, sensível a tudo o que há de maligno no mundo: as notícias dos jornais o perturbam profundamente.
O mesmo se dá com um povo sem memória, que esquece do seu passado e, com isso, se fragiliza. O leitor brasileiro pode encontrar em Flores, além de uma narrativa muito bem construída, um modo de encarar a si mesmo e ao mundo, e tomar cuidado com as hipocrisias – reais e figuradas – que o livro apresenta. Por isso, cada momento de reflexão antes de uma decisão, grande ou pequena, é um momento de importância extrema.