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Autores

Max Millian Rodrigues

Laís Manfrini

Marcelo de Araújo

Susana Vieira

Thais Rocha

Hileane Barbosa

Daniel Wachowicz

Davi Caldas

Rone Cristiano da Silva

Revista

A glória da fama

Bienal do Livro celebra a leitura com novidades em 2015

Conto por B. Craus Nantai

nº 5

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Equipe

Editora-chefe

Mayara Barros

Conselho Editorial

Claudia Bianco

Marcelle Andrade

Marina Brandão

Mayara Barros

Vitória Pratini

 

Projeto Gráfico

Claudia Bianco

Marcelle Andrade

Mayara Barros

Victor Vicente

Vitória Pratini

Jornalistas

Claudia Bianco

Marina Brandão

Mayara Barros

Vitória Pratini

Colunistas

B. Craus Nantai

Ilustração de Capa

B. Craus Nantai

Revisão

Claudia Bianco

Contato

 

contato@revistavessa.com

www.revistavessa.com

 

Fone: (21) 992335745

Facebook: /revistavessa

Twitter: @RevistaAvessa

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set/out 2015

A revista Avessa é uma iniciativa independente de graduandos do curso de Jornalismo da UERJ. Os textos divulgados são de inteira responsabilidade de seus autores e não necessariamente refletem a opinião da revista. Não é permitida a reprodução dos artigos e textos aqui publicados.

Nº 6

Set/Out 2015

Editorial

Temos o prazer de trazer mais uma edição da Revista Avessa! Essa é a primeira edição do segundo ano de vida e estamos muito felizes de ver o nosso trabalho sendo bem recebido pela comunidade e o apoio de vocês faz com que continuemos nos esforçando para dar o nosso melhor sempre.

A equipe tem projetos que a gente quer colocar em prática, mas como o trabalho na revista é voluntário, às vezes, esses projetos precisam ser deixados de lado por causa de outras questões mais urgentes em nossa vida. Isso não quer dizer, porém, que a gente não pensa no que pode fazer ou melhorar no que condiz ao nosso trabalho aqui.

Queremos colocar esses projetos em prática e esperamos que este seja o começo de mais um ano maravilhoso de descobertas e crescimento, não só da revista, mas de todos vocês, que confiam suas histórias a nós.

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Mayara Barros

Editora-chefe

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24 de maio em Florença

Abraçando marcas

Max Millian Rodrigues

Laís Manfrini

Marcelo de Araujo

A prisão das almas

Gente é gesto perdido

Bienal do Livro celebra a leitura com novidades em 2015

A glória da fama

Susana Vieira

B. Craus Nantai

23

prosa

artigo

31

33

coluna

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prosa

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prosa

poesia

Daniel Wachowicz

O fator John Green

O presente

Hileane Barbosa

Os muros

Thais Rocha

Ansiedade

Turista do passado

Rone Cristiano da Silva

Davi Caldas

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prosa

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poesia

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Max Millian Rodrigues

maxmillianrodrigues@gmail.com

Abraçando Marcas

Max Millian Rodrigues é graduando de História pela UFMS, Web Designer e se aventura pela

Psicologia. Amante da leitura e escrita, foi editor da Revista Trilhas

da Histórias e vive em Três Lagoas. Ganhou o NaNoWriMo 2012 com a

obra TODODKETAI - Demônios com Asas e mantém seu perfil no Wattpad

publicando Maldita Íris Azul, uma história de suspense e

investigação.

Toda força empregada em retirar as manchas. Nada disso é possível. Nada disso vai dar certo — Porque tive que usar essa panela? — Os ruídos da janela ao fundo sombrearam meu coração de esperança, quando a vi, tudo da pia foi ao chão.

— Pai o que está fazendo? — sorriu pra mim com alegre simpatia enquanto meus esforços com a panela eram vãos.

— Tentando de toda forma retirar essa gordura da panela, não consigo meu bem... Sua mãe esta para chegar... — olhei para aqueles olhos sorridentes a minha frente — Não sei o que fazer! — respondi levantando em lágrimas a panela maldita.

— Pai, — ela sorria como a mãe — sabe que deve descansar, não precisa se esforçar tanto... Mamãe vai ficar irritada por estar de pé.

O cheiro de ambrosia recorria vivo pelos corredores, nada além do delicioso aroma e viscosidade da gordura em minhas mãos.

— Por que!? — meu grito ecoou pela cozinha. Ela partiu de repente.

Lavar a louça nunca foi tão terrível. As sombras da amargura parecem me consumir a cada instante. Não quero reviver as expectativas. Quero apenas viver longe de todas essas coisas.

— Você escutou quando eu entrei pai?

— Você entrou pela janela novamente. — sorriu sem mostrar os dentes.

— Sim — respondi observando suas costas enquanto esfregava com toda força a panela.

Podia escutar o cochichar dele. Mania terrível de falar sozinho. Os socos contra a pia sempre me arrepiaram, sempre senti medo, mas nunca o enfrentei. O medo se tornou uma ferramenta de segurança em minha vida.

Sempre quis contar como são meus dias na escola. Nunca pude. Sou uma prisioneira ao ar livre, não existem grades que me prendam nesta casa, existe um muro invisível e terrível que me impede de correr.

— O que mais devo fazer para que essa gordura saia? — sorri educadamente capturando o olhar dela em um singelo semblante.

Viscosidade sempre foi algo terrível pra mim. Não suporto quando não consigo segurar algo de forma firme. Tenho medo de deixar escapar por entre os dedos uma oportunidade.

— Filha? — sorri — Estou falando com você.

Nenhuma palavra foi proferida. Nada. Absolutamente nada. Não suporto o silêncio da solidão quando estou acompanhado.

— Filha? — sorri de frente aos seus olhos — Fiz uma pergunta pra você querida.

Estou com medo. Não consigo responder. Ele sabe que não, estou amordaçada. Estou com medo que ele me bata ou faça algo pior.

— Assim você torna tudo bem complicado querida, — soprei agora de frente ao fogão — Sabe que eu te amo, não sabe? — depositei a colher sobre a chama.

Estou com medo que ele me queime.

— Porque gosta de me machucar pai? — sussurrei em soluços.

— Não chore querida, não chore... — foi carinhoso tocando meu rosto com sua mão fria — Lágrimas não combinam com você.

O teto sobre minha cabeça se rasgou em pedaços quando senti a colher queimar minhas costas. A camiseta molhada de suor tampou novamente minha boca em lágrimas vivas.

Desespero sem ter para onde correr. Desespero sem ter com quem dizer. Terrível vida, porque as coisas têm que ser dessa forma? Preciso de forças. Preciso lutar. Silencio-me nas lágrimas do colchão enquanto o escuto sorrir.

— Está vendo isso? — sorri me despindo aos fundos da casa — Alguém conseguirá me amar assim? — chorei ao ver seus olhos tristes sob as árvores do outono — Não conte nada, por favor. — pedi.

— Não contarei a ninguém sobre suas marcas. Confie em mim.

— Eu confio — respondi selando um juramento de eterna harmonia.

Os olhos assustadores de meu pai estavam a minha frente novamente. Mamãe não podia ajudar. A camisa de força se fez necessária. Os golpes eram frequentes. Nada daquilo condizia com a realidade. Ela sempre foi uma mulher forte.

— Ninguém poderá lhe ajudar querida — sorria constantemente enquanto eu sofria. A mesa da cozinha era a parte terrível da casa.

A mãe olhava a cena. Seus olhos torneados de dor sangravam lágrimas pálidas como a manhã sem vida. Os gritos da filha permaneciam duros como aquela singular sentinela no topo da torre, reinante no amanhã.

Vendo mãos duras segurarem a filha, podia ouvir seus gritos serem eternizados. Seu esposo ao chão deixava o sulco branco descer-lhe pela boca. Ele balbuciava. Em algum lugar, ambos permaneciam na eterna discussão. A panela estava ao chão.

Caminhou entre as poltronas. Nenhum deles se moveu ou a cumprimentou. Passou diante dos dois como uma desconhecida em trajes normais de frente a um mundo que desmorona. Seus olhos cuspiam lágrimas.

O mar estava revolto. Seu coração em trevas. A panela precisa ser lavada. Não era gordura... Era o sangue que a separava da liberdade. Virando-se para ambos que se olhavam sem ternura, sem razão, sem sentimento... Pai e filha eram estranhos.

Voltou seus olhos a frente. A mesa estava posta, o pai estava ao chão com um garfo no olho direito. Mãos vermelhas correram pelo chão até um dos quartos, deixando marcas ao fugir.

Conseguia escutar os sulcos de golpes, as lágrimas de uma menina, sua menina. De alguma forma sorriu. Perante os sons de terror, sabia que lhe traziam boas novas da liberdade.

Seu corpo também estava marcado. Marcas profundas e silenciosas que o tempo não apagou por completo. As marcas ainda queimavam. O som da carne grudando no metal era terrível, quando fechava os olhos ainda o escutava.

Em lentos passos conseguia sentir a reta final. Ao longe sentiu que sua pequena não sofreria mais.

— Ela se foi?

— Sim. Ela se foi. — me respondeu sorrindo quando o abracei.

— Ela sofreu? — perguntei olhando em seus pequenos olhos claros como o céu.

— Ela sorriu no fim.

— Obrigada querido. — toquei aquele pequeno rosto com minhas mãos enquanto observava cada milímetro daquela sutil beleza encontrada em poucos. — Queria tanto que tudo fosse diferente.

— Eu sei... — respondeu penetrando seu olhar em mim.

— Deveria ter dado fim a toda essa dor no início meu bem, a culpa de todas essas coisas são minhas. — chorei em seu abraço.

— Não se preocupe. — disse aos seus olhos buscando acalmá-la — Sei o que fazer.

— Eu sei que sabe meu amor — respondi beijando sua testa. — Estou indo pra cama, ok?

— Ok, logo vou também.

— Não posso esperar você querido, tenho que ir...

Ele parou para olhá-la melhor. Seu rosto lindo. Mulher fantástica e corajosa que está a dois passos da liberdade.

— Tudo bem, vá. — sorri — Eu te amo.

— Eu também te amo querido — escutei dizer antes da porta do quarto se fechar.

Analisei todo o local. Não busquei maneira de encobrir nada. Busquei maneiras de seguir em frente, de deixar aquela casa para trás e partir para além de todas aquelas portas, daquela mesa, das poltronas, da pia e dos colchões sem vida que tornearam meu ser.

Caminhar por esse corredor sabendo que logo estarei livre torna essa cena triste.

— Gostaria de fazê-lo sofrer mais... Mas tenho que ir, elas me aguardam no quarto.

Após o girar da maçaneta, não houve som algum. Nenhuma sequência de ações, apenas os fatos. Fatos cruéis para muitos, mas que arrancou de meus lábios o mais puro sorriso, e de meus olhos lágrimas de felicidade.

Estava sorrindo. Estava realmente sorrindo, assim como sorri muito tempo atrás quando corria pelo Jardim Botânico do Rio. Era real, estava realmente livre.

A mãe estava na cama, recostada na cabeceira sorrindo, pálida e quase sem forças. Seu sorriso me encantou terrivelmente, corri para o abraço quente, ela agradeceu com um beijo em meu rosto.

Deitei-me ao seu lado, envolvi sua mão na faca com a qual cortou os pulsos. Respirei fundo. Tão fundo que pareci perder o fôlego. Meu grito eclodiu por entre os quartos e soprou veloz pelo corredor.

Senti a dor. Golpeei-me com a lâmina, aquilo precisava ser feito. O último golpe seria preciso, cuidadoso para não atingir a artéria. Senti o sangue escorrer por meu pescoço. Respirava com dificuldade enquanto o vermelho fluía quente pelos lençóis.

Meus olhos estavam trêmulos.

— Filho! Filho! — escutei a voz amável me fazendo retornar — Está tudo bem? — sorriu.

— Sim mãe. — respondi — Está sim.

Estávamos sentados a mesa. Ele estava de pé em frente ao fogão. A colher estava nas chamas. Mais uma noite de terror estava prestes a iniciar.

Minha irmã penetrou seu olhar em mim. Ela tinha as marcas, ao se despir mostrou-me todas. Também as tenho em mim. Todos temos. Sorri vendo mamãe segurar com dificuldade o garfo para comer.

— Eu a ajudo mamãe... — disse me aproximando.

— Eu preciso... — sorriu me puxando com fraqueza num abraço — Preciso que se salve dessa loucura. — falou baixo em meu ouvido — Quero que seja livre dessas amarras. — soprou — Faça isso por nós.

Olhei para minha irmã amordaçada com uma camiseta velha — Sim. — sorri a seus olhos — Eu farei.

Ele se sentou ao meu lado. Senti sua mão fria tocar meu rosto, assim como fez com ela em lágrimas. O garfo estava diante de mim.

O sopro do vento não adentrou a casa, na verdade, em instantes ele se retirou pelo corredor da sala. Atravessou silenciosamente a grossa porta de madeira e se encarregou de que ninguém na rua ouvisse os gritos a seguir.

Cravar em seus olhos o garfo foi o primeiro passo para garantir nossa liberdade. Tive que lutar bravamente... Quando a panela virou percebi que seria o fim.

Ele estava no chão, escorregou na gordura que tanto odiava. Tentava retirar o garfo e atingir-me. Não conseguiu a tempo. O cheiro de ambrosia caminhava entre nós.

Vi quando mamãe desamarrou minha irmã com agilidade nunca vista. Quando sua mordaça caiu vi seus olhos implorarem para que terminasse com aquilo.

Caminhei até ele sem pestanejar. Olhando em seu olho, percebi quando ele sentiu meu ódio. A panela teve muita utilidade. Voltei-me com um sorriso para minha irmã. Lágrimas pareceram percorrer meus olhos.

— Está vendo isso? — sorriu em lágrimas se despindo novamente diante de mim.

— Alguém conseguirá nos amar assim? — completou mamãe mostrando também suas cicatrizes.

Cicatrizes são algo que levamos para toda a vida, muitas delas nos trazem boas lembranças, brincadeiras de criança que terminam de maneira inesperada, que rendem boas risadas, porém outras são carregadas de tristeza e dor.

Alguém conseguiria amá-las quando as cicatrizes e marcas fossem reveladas?

Sou o único capaz. Serei eu quem as carregará eternamente, sou eu quem reterá essas lágrimas em meu coração. Sou o dono desses sorrisos tristes.

— Vamos? — disse minha irmã olhando-me com carinho ao estender-me a mão.

— Sim, vamos. — respondi segurando firme sua mão como quando corríamos pelo Jardim Botânico em pleno inverno.

Chegando ao quarto fechei a porta. Ela sentou-se no chão e sorriu. — Eu sei que vai doer, não pare. Não vou gritar — disse sem rodeios analisando meus olhos. Ela sempre confiou em mim. — Eu te amo maninho, te amo muito e sempre vou te amar.

— Eu também. — respondi fechando os olhos em meio ao calor de minhas veias. Lágrimas surgiram de repente para acompanhar meus passos.

Ao primeiro golpe do taco ela tombou. O sangue escorreu na parede. Continuei até ter certeza que estava feito. O som ecoava pela casa. Tinha terminado. Minhas mãos estavam trêmulas. Abri a porta e caminhei para fora.

— Ela se foi? — mamãe perguntou segurando as lágrimas.

— Sim. Ela se foi. — respondi sorrindo ao sentir seu forte abraço.

Quando mamãe entrou no quarto chorei sem ela ouvir.

Minhas marcas são de sangue. São de carne ao metal. São fundidas de dor intensa, porém serão menores... Os dias piores se foram.

Chorei aos seus olhos tristes. Chorei por levá-las ao túmulo, chorei por não tê-las comigo... Chorei por todos estarmos finalmente livres.

— Rápido! Chamem os paramédicos! O garoto está vivo!

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Laís Manfrini

llmanfriniescritora@gmail.com

A Prisão das Almas

“Gosto de contar histórias desde que me entendo por gente, mas comecei a me dedicar à escrita de livros em 2007, aos 13 anos de idade. Por enquanto, meu único trabalho publicado é o conto A Ladra que Roubava Ladrões, que participou do concurso Brasil em Prosa, mas tenho planos para publicar em breve mais contos e também livros, em que venho trabalhando enquanto tento não procrastinar.”

Eu vi, eles me mostraram.

A névoa escura rasteja pelo chão. Do céu as cinzas despencam inexoravelmente. O cheiro do sangue se mistura ao cheiro da morte e ao cheiro da perdição. Todos vagam sem propósito, sem alternativa, sem esperanças; por dentro ou por fora, estão quebrados. As plantas murcham e as fortalezas se tornam ocas.

O mundo será feito de memórias esquecidas, de morte e então de nada, a menos que alguém a impeça.

Ela está adormecida, eles disseram, mas despertará.

Uma lágrima escorreu por seu rosto pálido. O homem a acalentou com um abraço, tentando emprestar algum calor ao seu corpo trêmulo.

Não se preocupe, minha cara. Foi apenas um pesadelo.

 

Yoranna foi arrancada do mundo dos sonhos por um estalo metálico.

De início, imaginou que estivesse enganada. Deve ter sido um resquício do sonho, pensou.

Quase era arrebatada mais uma vez pelos braços reconfortantes do sono quando a magia que vibrava em seu interior a alertou. Havia alguém na biblioteca: ela podia sentir sua presença como um zumbido dentro de sua mente.

Com o coração batendo como um tambor contra seu ouvido, Yoranna agarrou sua lâmpada mágica e, mais desperta do que nunca e armada com feitiços não muito úteis, deixou seu quarto para pegar o ladrão de segredos.

Mas, quando finalmente emergiu do escuro labirinto de corredores, era tarde. A janela estava escancarada, e a lua iluminava as estantes altas e antigas. Correndo em disparada pelos jardins, havia um vulto negro e tremulante.

Temendo que suas ambições fossem arruinadas pelo descuido de uma noite, Yoranna percorreu a biblioteca em busca de descobrir o que estava faltando. Quando avistou a fresta cheia de sombras entre dois livros, no canto inferior da estante mais distante, suas entranhas se apertaram.

Algo muito pior do que uma demissão a aguardava.

 

As labaredas consumiam a madeira e lambiam a pedra. Empurravam as trevas para longe e empesteavam o ar com fios de fumaça, quase indistinguíveis contra o céu sem estrelas, mas mesmo assim sufocantes. Os gritos que preenchiam o ar compunham uma sinfonia que falava sobre medo, desespero e dor. A noite fria se transformara em um dia quente de verão.

Havia uma única pessoa naquele vilarejo que não estava gritando. Como se fosse imune às chamas, surgiu entre duas labaredas, montada em um cavalo negro. Sua fuga era rápida e desabalada, mas ainda assim alguns tiveram tempo de reparar nas características destacadas momentaneamente pela luz infernal: a capa que balançava como um pedaço de treva, o queixo pálido e pontudo e uma mecha de cabelos ruivos. Amarrada às suas costas estava a antiga espada que durante anos repousara na parede, sob os cuidados do sacerdote; sua lâmina mágica brilhava como um sol no meio do inferno.

Apesar da luz emitida pela relíquia surrupiada, logo o vulto feito de fogo e trevas se tornou indistinguível no horizonte, e não havia nada que eles pudessem fazer que não lamentar seu pequeno apocalipse particular.

 

Nayra nunca dera crédito às histórias contadas sobre a Rainha das Sombras. Afinal, eram histórias fantasiosas sobre uma mulher de capa preta que assombrava pequenos vilarejos, queimando-os ou então assassinando ou sequestrando jovens. Ela vem para recolher almas, alguns diziam. Não, ela as mata para se alimentar de seu sangue, alguém rebatia. Idarar possuía um especial apreço por contar histórias de horror envolvendo a Rainha das Sombras. Ele era tão bom nisso que sua taverna vivia cheia, e ele prosperava como ninguém.

Porém, naquele exato instante, as histórias de Idarar apenas serviam para enchê-la de pesadelos. Pois a Rainha das Sombras estava bem diante dela, pairando ao lado de sua cama, estudando-a como se tentasse decidir qual a melhor maneira de ceifar sua alma. Era exatamente como Idarar costumava descrevê-la: trajava uma capa negra com capuz, deixando à vista apenas o queixo pálido e os cabelos ruivos.

Mas nenhuma das histórias falava do silêncio que emanava dela. Frio e pesado, parecia vibrar como um escudo. Um escudo por trás do qual ela escondia a melancolia de uma alma incompreendida. Porque ali, nos derradeiros minutos de sua existência, Nayra pôde entender o que a inquietava.

A Rainha das Sombras se inclinou na direção da jovem e uma lâmina faiscou em seus dedos enluvados. A luz da janela afastou as sombras de seu rosto e Nayra pôde vislumbrar seus olhos. Estava ciente do momento de compreensão de Nayra, mas esta soube que aquilo não a pararia. Almas inquietas dificilmente tomavam decisões sensatas.

 

Elara puxou as rédeas do cavalo e se pôs a contemplar a enorme construção.

Erigida de maneira a fazer parecer que saía da pedra, poderia ter sido esculpida pelo próprio vento. Torres, pináculos, terraços e varandas se intrincavam em um padrão aparentemente caótico, mas ainda assim belo. Joias incrustradas na pedra brilhavam em contraste com as sombras que espreitavam por trás de portas e janelas. Em conjunto com o jardim repleto de árvores e flores, a construção era tão bela e magnífica que era difícil assimilá-la como a morada de uma das entidades mais vis que habitavam aquela terra.

A mulher desceu do cavalo e atou suas rédeas ao tronco de uma das árvores. Ansiosa, espiou a estrada de onde viera. Ainda não podia vê-los, mas já era capaz de senti-los, o que era ruim. Não fora sua intenção deixar rastros, mas não pudera evitar. Anos e anos arrasando cidades e vilarejos tinham despertado o ódio do povo e o feito se enraizar tão profundamente que eles estavam irreversivelmente cegos. Nunca a compreenderiam.

Não que eles a tivessem compreendido alguma vez. Leramon descartara suas previsões como pesadelos de uma criança assustada. Jalabah, a grande profeta, fora tão cética quanto. Nenhum vidente veio ao mundo desde a aniquilação de Imaraka, a Fortaleza dos Videntes, ela dissera, Não se atreva a semear o medo nos corações ignorantes daqueles que não foram tocados pela magia com seus devaneios de criança.

E Elara compreendeu que ninguém lhe daria crédito, por mais que seus dons lhe dissessem que o tempo se esgotava, que Jaramina, a Senhora do Caos, não tardaria a despertar. Por isso tomou uma atitude: teria de destruir a deusa antes que fosse tarde. E a pressa exigira atitudes drásticas.

O livro em sua bolsa, roubado de um canto esquecido das prateleiras da Grande Biblioteca, continha os mais sórdidos feitiços, que há séculos não passavam de um sonho quase esquecido. O pingente em seu pescoço pulsava com a força de mais de mil almas. A espada cuidadosamente amarrada às suas costas vibrava, ansiosa por sorver o poder que lhe era destinado. Elara quase rira quando soubera que estava perdida em um pequeno vilarejo, protegida apenas por um velho sacerdote.

Com a capa negra tremulando, a mulher seguiu para o magnífico palácio de Jaramina. Cruzou salões esquecidos, corredores escuros e passagens que sussurravam segredos, impulsionada pelos rápidos vislumbres de um mundo em ruínas. Apenas parou quando alcançou seu destino, o grande Coração do Caos.

Estava vazio, mas Elara podia sentir seu poder. Ele vibrava através das colunas, fazia a abóboda do teto tremer. Os mosaicos do piso eram como um caleidoscópio, às vezes girando rápido, às vezes tão vagarosamente que pareciam quase imóveis. Não havia padrão: eles refletiam o estado caótico da entidade, que odiava a ordem e tinha como seu maior anseio destruí-la, extirpá-la daquele mundo. O ar era preenchido por um silêncio expectante — aquele silêncio tenso e inquietante que antecipava o despertar.

Ainda sentindo o calor de sua corrida desenfreada, Elara desembainhou a espada que trazia às costas, seus movimentos precisos e cautelosos. De maneira lenta e calculada, como um ladrão se esquivando pelas sombras da noite, seguiu até o centro do mosaico, tendo em mente todos aqueles feitiços que aprendera naqueles anos de busca desesperada.

Ali, no centro do mosaico, o coração do Caos, depositou a joia com as mil almas. A espada, firmemente segura em sua mão, brilhou com mais intensidade, como se pressentisse o que estava por vir.

Então Elara reuniu toda a magia em seu interior, direcionou sua mente à espada e às almas e cantou. A melodia era grave e soturna, feita de palavras esquecidas, mas vibrou pelo salão, dividindo espaço com o poder caótico de Jaramina. E aos poucos a prisão se construiu, utilizando-se do poder das almas aprisionadas. A espada se alimentava da canção, e com esse poder teceu a estrutura intrincada, inquebrável.

Elara não tardara a compreender que nenhum mortal poderia se equiparar com o poder de uma deusa — muito menos com o da deusa do Caos, aquela que gerara o universo e seu poder caótico. Mas ela podia aprisioná-la, englobá-la em uma cela de almas ordenadas pelo poder da mente. Uma cela que a manteria afastada do mundo e aplacaria seu poder, mesmo que a deusa acordasse.

Celas podiam ser abertas, Elara sabia, por isso teve o cuidado de ocultar a chave e a fechadura. Um dia alguém as encontraria (seus dons lhe davam essa percepção), mas aquilo era tudo o que podia fazer. O mundo estava, por ora, protegido.

A joia deixou de brilhar e a lâmina se apagou. O salão parecia mais escuro, e os mosaicos tinham deixado de girar. Mas agora uma infinidade de sons o preenchiam. Os sons de guerreiros lendários, de aldeões enraivecidos. Os sons de homens e mulheres que haviam sofrido com as atrocidades daquela que chamavam de Rainha das Sombras. Sons de espadas sendo desembainhadas e correntes se arrastando pelo chão. E, sobrepondo-se a toda aquela caótica cacofonia, o som de corações odiosos.

— Vocês precisam entender. — Elara suplicou.

Mas é claro que eles não compreenderiam. Eles não queriam compreender. Apenas desejavam a vingança pelos entes mortos e os vilarejos queimados. E era isso que teriam.

Diante de seus olhos raivosos, Elara gritou. Sua voz era permeada de dor, desespero e súplica. Era a voz de uma alma incompreendida, mas aqueles que ali estavam não a ouviram. Com espadas, facas e correntes, retalharam-na, cada um se satisfazendo com sua vingança particular. Estavam, finalmente, livres da Rainha das Sombras, aquela que lhes trouxera a dor, a perda e o caos.

Anos mais tarde, ainda era possível ouvir as lamúrias de Elara, a Rainha das Sombras. As histórias contavam que sua alma inquieta vagava pelo magnífico palácio, gritando ou cantando, expulsando todos que ousavam se aproximar em busca dos segredos da misteriosa construção.

A verdade era que, mesmo depois de ter sua vida tomada, Elara ainda assim cumpria a promessa feita a si mesma: ninguém se aproximaria da prisão de almas. Ninguém teria a chance de encontrar a chave e a fechadura e libertar a deusa recém-desperta. Elara era a guardiã, e ali permaneceria até que não lhe restassem forças para resistir. Por trás das lamúrias e das canções melancólicas, ela guardava uma ponta de esperança: a de que um dia iriam entender suas motivações.

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24 de Maio

em Florença

Tarde da noite na pensão. Pedro esboça no quarto planos para uma segunda narrativa, ainda mais ampla e solene que a primeira. Na véspera, os jornais enalteceram a obra: fiel aos detalhes, genuína em ambição. “Um gênio” – alguns artigos sugeriam. Pedro, é claro, apreciava os elogios na imprensa. Mas estava também convencido de que as filas que haviam se formado na estreia, indiferentes à chuva que assolava o galpão improvisado em que se erguera a enorme tela, poderiam ver um dia os contornos de uma batalha ainda mais dramática. Uma batalha até ali inexplorada por artistas como ele. Seria uma narrativa longa, de metragem mais extensa, exigindo agora duas, talvez três horas da atenção de quem pagasse para entrar. Aquela combinação de palavras, inclusive, não lhe deixava a cabeça: “longa, a narrativa; extensa, a metragem: longa-metragem”. Afinal, de que outra forma ele poderia projetar sobre a tela um arsenal de canhões e baionetas, as balas, as baixas, as bombas despejadas sobre mais vinte mil soldados em combate? Uma devastação nessa escala não caberia em nenhum outro formato. Estava então decidido: longa-metragem!

Mas longa também foi a noite. Pedro mal conseguiu dormir. E depois só acordou porque, pela terceira vez de manhã, a dona da pensão bateu com mais força na porta:

– Seu Pedro, é aquele moço novamente! O senhor não vai se levantar?

Quando a Guerra do Paraguai terminou, em 1870, Pedro tinha menos de trinta anos. Àquela altura, os cofres do Império já haviam se exaurido. Não que Solano Lopes, cumprindo as ameaças, tivesse tomado de assalto a capital e saqueado o palácio em São Cristóvão. Solano estava morto, e milhares de soldados das três bandeiras também. Mas era preciso celebrar, inscrever na memória nacional cada episódio daquela campanha gloriosa. As pessoas poderiam muito bem ter escrito mais artigos na imprensa, peças de teatro, romances sobre a guerra, ou, como o Visconde de Taunay, registrar em livro o diário do conflito. Mas sendo raros os escritores, e quase inexistente a figura do leitor, escreviam então a pinceladas uma história diferente: uma que todos pudessem ler.

A “Batalha do Avaí” engoliu mais de quatro anos da vida de Pedro. Um colosso de tela, como nunca se vira antes no país. As pessoas aguardavam por horas na capital para assistir àquela profusão de paraguaios maltrapilhos trespassados pela munição das espingardas do Império; lâminas em riste intimidando um inimigo descalço e acuado; um céu plúmbeo tão pesado que parece vai desabar sobre a legião de feridos que vão se espremendo sem espaço contra a moldura da tela, um retângulo de gesso dourado com dez metros de largura, por outros seis de altura. O quadro era tão grande que por ordens do Imperador se fez construir um barracão de madeira, bem no centro da cidade, que pudesse abrigar a tela e acolher a multidão. A “Batalha do Avaí” era a vitória pessoal de Pedro, sua glória privada ao cabo do exílio autoimposto em Florença.

E no entanto, nenhuma conquista é tão completa que não exija algumas baixas. Pedro tentava rebater críticas esparsas, disparadas de alguns flancos nos jornais da capital: insinuações de plágio, acusações de imprecisão, erros. Os disparos na imprensa não chegavam a lhe roubar o sono, como as ideias que tinha para a nova narrativa, o quadro em longa-metragem que intuíra na noite anterior. Mas as críticas, de todo modo, ofuscavam o brilho de um projeto concluído. Era como se lhe ferissem a baionetas um pedaço da tela.

Antes que lhe espancassem novamente a porta, e ainda metido em seu roupão, Pedro deixou o quarto e gritou do corredor:

– Avisa que já vou, Dona Teresa!

Ele mal terminou a frase e ela surge novamente:

– Seu Pedro! A essa hora do dia, desse jeito. E com esse robe de chambre todo aberto. Nós já conversamos sobre isso.

– E sem robe de chambre nós conversamos também, Dona Teresa – respondeu ele em tom de segredo para provocar a mulher.

– Seu Pedro! Tem mais gente na pensão a essa hora – disse ela, abaixando um pouco a voz. – E o moço do jornal? O senhor vai falar com ele ou eu mando embora como os outros?

Pedro ainda tentou atrair a mulher para dentro do quarto, como ele às vezes fazia, mas ela percebeu a emboscada e bateu em retirada. Ao retornar de viagem, a pensão de Dona Teresa era sua primeira parada, mesmo quando não pretendia se hospedar. Já circulavam inclusive rumores sobre uma sobrecasaca surrada que Pedro, coitado, o artista distraído sempre esquecia no armário da pensão. A mesma peça de roupa que o obrigava a procurar Dona Teresa assim que desembarcava na cidade, mas que traía também agora o seu paradeiro para a gente dos jornais. Angelo Agostini não teve dificuldade para encontrar o pintor.

– Seu Pedro, preferi vir eu mesmo dessa vez. Não quero que depois venham dizer pro senhor que a Revista Ilustrada fomenta brigas, conflitos, divergências, mas o senhor tem que dar uma declaração, se explicar, falar qualquer coisa que seja em sua defesa. As especulações sobre plágio, a disputa sobre o preço da obra, e até a presença de um soldado improvável bem no meio do quadro, com o número 33 estampado no quepe, tudo isso é o de menos. Ninguém mais se importa. O problema mais grave agora é a acusação de traição: O Duque disse ter sido traído na batalha encenada na tela. Uma traição ainda maior do que ele poderia ter realmente sofrido na Batalha do Avaí, onde o General de fato quase morreu.

– Traição? Por causa de uma casaca desabotoada? Eu já expliquei isso uma vez para o Jornal do Comércio, e o senhor devia saber: Era necessário prolongar, por assim dizer, as cores claras da parte inferior do cavaleiro, para não separar da parte superior, que ficaria toda escura sem o recurso do colete branco, visível por debaixo da casaca entreaberta. A parte superior e a parte inferior não podiam estar assim divididas sem comprometer por inteiro a composição da batalha, sem irritar o olhar de quem inspeciona com atenção a gravidade da cena. Eu tive de desabotoar a casaca para mostrar essa transição de cores em meio ao drama da guerra, no calor do conflito. O senhor não vê? A casaca desabotoada, no fundo, é a expressão de nossa vitória, é a glória de nosso General. Mas isso o Duque não quer entender.

– E eu também não entendo, se o Senhor quer saber. A cidade toda viu a cara de desprezo de Caxias. Quando Sua Majestade perguntou o que o General achava do quadro, o Duque respondeu primeiro com silêncio, mas logo reconhecendo que isso não é resposta que se dê ao Imperador, ele respondeu em seguida para todo mundo ouvir: “Desejava saber onde o pintor me viu de farda desabotoada; nem no meu quarto!” O Duque não aguentou mais dois minutos e sumiu do barracão. O Imperador, ele próprio indeciso, não sabia se ficava ou se seguia o General.

– Agostini, anota o que digo: é nos barracões que contarão um dia a nossa história. A “Batalha do Avaí” é só o começo desse grande desfile.

– Então o Senhor vai ter de contar outra história para o Duque. E é melhor caprichar na casaca, e não economizar tinta quando pintar a transição. De histórico, Caxias acha que o seu quadro tem muito pouco. E Dom Pedro, mais reservado do que o Duque, parece achar isso também. E isso, Seu Pedro, depois de tudo que eles despacharam para o senhor em Florença: mapas de batalhas, cartas de soldados abatidos em combate, sabres, pistolas, arreios de cavalo, botas de montaria, e até os dentes de um paraguaio morto eles dizem ter despachado para a Europa. Mas os botões da casaca do Duque, não, esses devem ter se perdido na viagem.

– Agostini, a casaca de Caxias não é uma peça de roupa para enfeitar o General em meio a um campo de batalha: ela é uma síntese. Um quadro histórico deve, como síntese, ser baseado na verdade e reproduzir as faces essenciais do fato, e, em um grande número de raciocínios derivados, a um tempo, da ponderação das circunstâncias verossímeis e prováveis, e do conhecimento das leis e das convenções da estética. É tudo muito simples, Agostini. Mas até isso o Duque se recusa a compreender.

Agostini não compreendia. Pedro insistia em não se fazer entender. Não se passaram dez minutos e o dono da Folha Ilustrada deixou a pensão de Dona Teresa e seguiu num fiacre para a Rua do Ouvidor. Parecia irritado. Tempos depois Agostini publicou em seu jornal uma caricatura como resultado da entrevista: sua própria encenação da encenação da Batalha do Avaí. Uma narrativa sobre outra narrativa, não menos duvidosa que a primeira. Pedro é retratado no folhetim de Agostini não como um pintor, mas como um diretor de cena: A “Batalha do Avaí” é executada agora por oito pintores sob as ordens de um jovem comandante que de pintor tem muito pouco. Só parece dar ordens. Era a terceira Batalha do Avaí: a de Agostini, não a de Pedro. A Batalha do Avaí, a primeira, foi a maior vitória do Duque de Caxias, mas também sua derrota.

No quarto da pensão, Pedro esboça planos para uma segunda narrativa, ainda mais ampla e solene que a primeira: A Batalha de Tuiuti. Mais de vinte mil homens em combate. Quatro mil mortos. Um 24 de maio glorioso. Mas era preciso retornar para Florença, porque era da Europa que Pedro enxergava melhor o Brasil. Não tinha tempo a perder.

– Dona Teresa! A senhora viu minha sobrecasaca?

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Marcelo de Araujo é escritor e pesquisador. Doutorou-se em filosofia pela Universidade de Konstanz, Alemanha. Professor de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Trechos citados:

Frase atribuída ao pintor Pedro Américo: “Era necessário prolongar, por assim dizer, as cores claras da parte inferior do cavaleiro, para não separar da parte superior, que ficaria toda escura sem o recurso do colete branco”. Citada por Lilia Moritz Schwarcz. A Batalha do Avaí: A Beleza da Barbárie: A Guerra do Paraguai Pintada Por Pedro Américo. Rio de Janeiro: Sextante, 2013, p. 51.

 

Frase atribuída a Duque de Caxias: “Desejava saber onde o pintor me viu de farda desabotoada; nem no meu quarto!”. Citada por Lilia Moritz Schwarcz, ibid. p. 51.

 

Frase atribuída ao pintor Pedro Américo: “Um quadro histórico deve, como síntese, ser baseado na verdade e reproduzir as faces essenciais do fato, e, em um grande número de raciocínios derivados, a um tempo, da ponderação das circunstâncias verossímeis e prováveis, e do conhecimento das leis e das convenções da estética.” Citada por Cecília Helena de Salles Oliveira e Cláudia Valladão de Mattos. O Brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999, p. 19.

 

“Agostini publicou em seu jornal uma caricatura como resultado da entrevista: sua própria encenação da encenação da Batalha do Avaí.” Alusão à caricatura feita por Angelo Agostini, publicada na Revista Ilustrada, em 10 de maio de 1879. Cf. Álvaro Cotrim. Pedro Américo e a Caricatura. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1983, p. 69. Cf. também Lilia Moritz Schwarcz, ibid. p. 41.

Marcelo de Araujo

marcelo-de-araujo.blogspot.com.br

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marcelo.araujo@pq.cnpq.br

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Gente é gesto perdido

O rio escuro sussurrou-lhe que ia chover. Abriu com ambas as mãos a pequena caixa de música. Quando não se consegue esquecer – ou melhor: quando se é obrigado a não esquecer, o vidro rasga a pele à superfície mas afunda-se na carne escura e aí fica espetado, afundando-se e doendo duramente quando, inadvertidamente, se passa a mão pela pele. Abriu, pois, a pequena caixa de música. Rodou a corda até ao limite e encostou a testa suada no vidro da janela.

A menina passou pela rua uma segunda vez num quarto de hora. Pequenina, dentro das roupas largas, não se lembrava de ter passado por ali. Medindo forças com o peso frágil, olhou as árvores sem folhas que se agitavam perturbadoramente. Não se lembrava que anteriormente estivera ali, que escolhera usar dos mesmos gestos. Gestos perdidos - como as vozes. As vozes eram-lhe brancas: branco suave, branco de espera, branco da chegada. As vozes eram-lhe as horas caladas e as horas nervosas. E ela, presa, fechada no corpo despido das árvores. Nas horas brandas. Os cabelos sujos escorriam pelas costas magras e doentes, os olhos da menina... negros, talvez – fosse como fosse, dava para perceber que eram muito escuros… e silenciosos… Dificilmente reconheceria, daí em diante, olhos tão belos como os dessa menina, transbordantes de tanto silêncio.

Quando a menina olhou pela primeira vez a janela com gente, sorriu-lhe e os seus olhos sorridentes tocaram-lhe de mansinho no ombro. Cheiras bem, pensou devagar. Para si, tudo o que fosse sorridente só poderia cheirar bem. Depois de sorrir, o entendimento da menina morreu novamente e ela ficou de cabeça murcha pendendo sobre o fim do pescocinho desprotegido. No momento seguinte, sem pressa, o entendimento voltaria a insurgir-se para repetir a graciosidade do sorriso. À menina só lhe interessavam duas coisas: olhar o corpo nu das árvores e mostrar que sorria. Para ela isso era a única e importante revelação: ela oferecia, em consciência, a única coisa em que o seu limitado entendimento reparava quando agia. O mundo desconhecido, todo ele na sua inteireza, era uma arma que a feria; mas havia uma coisa, dentro do que ela bem entendia, que de algum modo a protegia: era a generosidade de se entregar toda em sorrisos. Ela percebia que essa simplicidade de sorrir deixava qualquer um em estado de espanto. Incansavelmente, o mundo exigente e espantado esperava que ela sorrisse sempre. Era uma tarefa de que a tinham encarregue e que, sem contrariar a sua vontade, ela assumia com muita dignidade. Nesse trabalho, ela empregava todas as suas forças e conhecimento de causa para desenvolver – a harmonia do sorriso. Até quando alguém se aproximava dela com a declarada intenção de a descuidar, ela achava que a situação seria menos dolorosa se sorrisse. Tinha de continuar a cumprir a sua obrigação, ainda que não compreendesse inteiramente os factos; a humilhação queimava-a mas ela continuava a sorrir. Entretanto, no meio de tanto sorriso que maravilhava e apaixonava - uma mosca pousava na pele branca de uma orquídea. Nalgum lugar. Pena que fosse longe.

Na erva suja estavam as outras crianças. Elas desgraciavam constantemente a menina perdida. Ó doidinha! Vem cá… As crianças nunca viam ou falavam as coisas com piedade. A piedade não passava de um aparato insignificante, desprovido de qualquer valor. Pois que era isso, o valor? Era, com efeito, coisa que se tocasse, que desse para desmanchar, que se comesse, que se pegasse para brincar? Empoleiradas na estrutura em ferro de um antigo outdoor, dobrado – elas tentavam tocar no chão com a ponta dos dedos ou tentavam apanhá-lo e levá-lo para cima… Trocar o chão com o céu e vice-versa. Tentando que tudo fosse um pouco mais possível. Elas achavam que conseguiam tudo. Agarraram na menina, que esticou os braços – ela também queria o céu –, e quando estava alguns centímetros elevada – se quisesse ela podia voar, o chão tremia sob os seus pés inquietos, ela podia voar, voar… -, soltaram-na e ela caiu. As outras crianças riram-se. A dor que a furou tornou-se insuportável… mas as outras crianças riam… então, apesar da dor que a furava alucinantemente, a menina riu muito e riu alto e riu com todas as lágrimas nos olhos. O pequeno corpo – que esteve quase lá, tão perto de tocar na leveza de tudo, que quase crescia tanto antes de o impedirem – esse pequeno corpo tremia e agoniava de tanta dor. As outras crianças deixaram a menina doidinha na sua dor solitária e foram embora, sem olharem as árvores sem folhas.

A corda rodava, rodava, rodava. A música demorava-se no fio da corda e rodava com ela, envolvendo subtilmente todos os objetos da sala e fazendo-se ouvir cada vez mais vibrante. Aproximou-se, devagar, do chá que esfriava. Afundou a colher na água sem nome; no interior – apenas círculos perfeitos. Por cima do ombro apareceu-lhe desavisadamente o gato. No seu aspeto mudo percebeu imediatamente que havia algo para lá do que era possível gente conhecer. Quase uma evocação que jamais alcançasse. Procurou, na secura do gato, que não era transparência, não era verdade, não era nada específico, procurou e nada resultou da sua busca incessante. Porém, a secura do gato apenas poderia refletir o que ou quem pulasse livremente para além do limbo da existência. Aborrecido, o gato saltou e correu rápido para fugir da mão que o desancaria por ter feito ribombar a chávena, despenhando no chão os círculos tão perfeitos.

Lá fora tudo acontecia semelhantemente como dentro da casa. A noite caía devagar sobre a terra e, com ela, num círculo igualmente muito perfeito, chegava o abandono do mundo. As crianças tinham abandonado o antigo outdoor e até a menina perdida abandonara a dor no chão. O círculo do abandono baixava-se sobre tudo, sem, no entanto, saber ao certo onde se fixar. Tudo em volta, ao entrar no círculo perfeito, tornava-se áspero e inominável.

Os pássaros adormeciam nas arestas inferiores dos telhados, os ratos furavam a madeira da ponte e aninhavam-se nos buracos, uma ou outra raposa vasculhava o lixo. E os homens? E as mulheres? A noite não deixava de lamentar o que indistintamente tanto poderia ser o reflexo inabalável da realidade ou uma invenção dela. Poderia o mundo, livre de homens e mulheres, ser menos sofredor? O odor de um mundo assim – sem homens, sem mulheres –, conseguia imaginar, revigorava-lhe o espírito. Resultaria – não poderia ser de outro modo – que o silêncio da casa dilatar-se-ia pelo mundo todo. O silêncio só fazia sofrer por uma simples, e pequena, razão: era porque ele não passava de um vidrinho que precisava ocupar todo o espaço; quando um minúsculo e insignificante dedinho, qualquer que fosse ou de quem quer que fosse - tocava nele, todo ele se quebrava, e os pequenos pedaços brilhantes espalhavam-se por todo o lado; e era quase sempre impossível reunir de novo todos os pedaços, achá-los nas pontas mais estreitas, no escuro mais fundo de tudo. Por isso – para facilitar as coisas - seria melhor que o mundo ficasse livre dos homens e das mulheres e dos seus dedinhos engordurados. Era tão claro que o mundo não precisava guarnecer-se de gente. Poderia ser feito apenas do silêncio incolor e feliz.

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Portuguesa, residente em Lisboa. Consultora linguística, tendo publicado um pequeno ensaio sobre literatura em revista académica, artigos e crónicas em publicações lusofrancesas e periódicos locais e pequenos contos em revistas de literatura brasileiras e portuguesa; agraciada ainda com uma menção honrosa em concurso internacional de contos.

Susana Vieira

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susanatvieira@gmail.com

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Bienal do Livro celebra

a leitura com

Imagem: Stewart Butterfield

novidades em 2015

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ocê já foi à Bienal do Livro? Esta semana, começa a Bienal Internacional do Rio de Janeiro, que levará legiões de leitores a se encontrarem, partilharem experiências, conhecer os principais lançamentos do mercado editorial, além de ver aquele autor favorito de pertinho.

Considerado atualmente o maior evento literário do país, ele nem sempre teve esse porte e status. Em 1983, o icônico Copacabana Palace sediava a primeira edição da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. De lá pra cá, os salões do hotel se tornaram pequenos para a festa. Hoje, com mais de 55 mil metros quadrados, a Bienal é realizada no principal centro de convenções da América do Sul, o Riocentro.

De 03 a 13 de setembro, a feira retorna ao Rio de Janeiro em sua 17ª edição, na qual homenageará a literatura argentina. Com grandes nomes da literatura nacional e internacional, o evento bate o recorde de 200 autores presentes, dentre os quais 27 são estrangeiros.

Entre eles, Eduardo Sacheri, cujo romance A pergunta dos Seus Olhos (2005) deu origem a O Segredo dos Seus Olhos, Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010, o inglês David Nicholls, autor do best-seller Um dia, Jeff Kinney, da série Diário de um banana, e Julia Quinn, autora de romances históricos como O Duque e Eu.

Na cota de escritores brasileiros, teremos, entre outros, Ferreira Gullar, Pedro Bandeira, Eduardo Spohr, autor de Batalha do Apocalipse, Thalita Rebouças, Gregório Duvivier e, claro, Ziraldo, marca registrada no evento.

Além dos autores, uma exposição será montada em torno de uma das personagens mais queridas das histórias em quadrinhos - Mafalda. Mas não apenas os quadrinhos argentinos serão homenageados: o evento irá destacar ainda o cartunista Maurício de Sousa, pai da Turma da Mônica, que irá completar 80 anos durante a festa.

Não foi só o número de autores recordes este ano, mas também o de alunos inscritos para visitação escolar: mais de 145 mil jovens da rede pública e particular. Assim, a Bienal certamente é o espaço para leitores das mais diversas idades celebrarem a leitura, a cultura e a educação através de palestras e rodas de discussão, além de ficar sabendo das novidades do mundo literário. Há livros e espaços para todos os gostos! Para quem curte um debate, dê uma passada no Café Literário, cujos encontros vão abordar a economia do mercado literário, autores clássicos que se perpetuaram no imaginário contemporâneo, datas marcantes como os 150 anos de Alice no País das Maravilhas, entre outros tópicos.

Para quem quer bater um papo com os autores, é só ir até ao espaço Conexão Jovem, pegar a sua senha e aguardar, porque tem fila! Interessado em poesia? Então, passe no SarALL e experimente intercâmbios de poesias de todos os países e regiões e oficinas de poemas que incentivam leitores a manterem a tradição da poesia oral. Outros espaços interessantes são o inédito Cubovoxes, onde ocorrerão atividades para jovens, que colocarão em pauta tendências de pensamentos e manifestações culturais; o Bamboleio, um espaço para as crianças, e o Fórum da Educação.

Depois de saber das novidades da Bienal 2015, você ainda não sabe em qual estande vai e quais autores vai procurar? Não se preocupe, pois daremos uma ajudinha com a programação a seguir:

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Divulgação

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Literatura e letramento: o prazer de aprender, com Pedro Bandeira

Sexta, 04 de setembro, às 10h15.

Fórum de Educação, Pavilhão Verde.

Thalita Rebouças

Sábado, 05 de setembro, às 11 horas.

Conexão Jovem, Pavilhão Verde.

Julia Quinn

Sábado, 05 de setembro, às 13 horas.

Conexão Jovem, Pavilhão Verde.

David Nicholls

Sábado, 05 de setembro, às 18 horas.

Conexão Jovem, Pavilhão Verde.

Collen Hoover

Domingo, 06 de setembro, às 11 horas.

Conexão Jovem, Pavilhão Verde.

Eduardo Spohr

Domingo, 06 de setembro, às 14 horas.

Conexão Jovem, Pavilhão Verde.

O Brasil em Crise, com Jean Wyllys e César Benjamim

Domingo, 06 de setembro, às 15h30.

Café Literário, Pavilhão Azul.

Mauricio de Sousa

Segunda, 07 de setembro, às 11 horas.

Conexão Jovem, Pavilhão Verde.

Vitória Pratini

vitoriapratini@revistavessa.com

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Como Virar Escritor: A Carpintaria das Oficinas Literárias

Quinta, 10 de setembro, às 18 horas.

Café Literário, Pavilhão Azul.

Nação Criativa, com o Grupo Jovem Nerd

Sexta, 11 de setembro, às 19 horas.

Cubovoxes, Pavilhão Verde.

Jornalismo Cultural: Modo de Usar

Sexta, 11 de setembro, às 20h30.

Café Literário, Pavilhão Azul.

Sophie Kinsella

Sábado, 12 de setembro, às 11 horas.

Conexão Jovem, Pavilhão Verde.

Paula Pimenta

Sábado, 12 de setembro, às 16 horas.

Conexão Jovem, Pavilhão Verde.

Redução da maioridade penal: Pra quem? Para o que?, com Alexandre Molon

Sábado, 12 de setembro, às 11 horas.

Cubovoxes, Pavilhão Verde.

Ferreira Gullar: Poesia e Prosa

Domingo, 13 de setembro, às 15 horas.

Café Literário, Pavilhão Azul.

Babi Dewet, Paula Pimenta, Bruna Vieira e Thalita Rebouças

Domingo, 13 de setembro, às 15 horas.

Conexão Jovem, Pavilhão Verde.

Marina Brandão

marinabrandao@revistavessa.com

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O fator John Green

Melanie era daquele tipo de pessoa que você só encontra uma vez na vida.

De alguma forma eu fora parar ali, em uma festa adolescente estúpida no meio da noite, nas ruínas abandonadas do que um dia fora um farol que ajudara muitos navegantes a se localizarem pelas águas do Atlântico naquela região. Os outros adolescentes estavam sentados em círculo ao redor de uma fogueira, rindo e falando ridiculamente alto enquanto passavam uma garrafa de alguma coisa bastante alcoólica de mão em mão e boca em boca. Minha irmã, uma das adolescentes próximas à fogueira, se recostava confortavelmente em um garoto atlético e bonito, que a encarava cheio de expectativas. Ela era a culpada por eu estar ali. Ela implorara a nossos pais que a deixassem estar ali, e eu fui obrigado a me juntar a ela, porque “era perigoso para uma garota ficar andando sozinha de noite em uma praia”. Concordo plenamente com eles. Era mesmo perigoso. Nunca se sabe que tipo de criatura vil e maníaca pode estar perambulando por uma praia à noite e, por isso, eles não deveriam ter deixado que nenhum de nós dois fosse. Obviamente, não fora a essa conclusão que eles chegaram.

E lá estava eu, sentado recostado em uma das paredes arruinadas do farol, vendo aqueles idiotas ficarem bêbados e terem ataques histéricos de risada, sem nenhum passatempo além de olhar o céu e o mar em suas versões noturnas. E então Melanie apareceu.

– O céu daqui é mesmo incrível, não é?

Olhei para o lado, onde agora se sentava (embora há cinco segundos não houvesse ninguém ali) uma linda garota de cabelo loiro, pele dourada e os olhos azuis mais incríveis que eu já vira na vida. Não era só a cor que era impressionante, mas também a forma deles. Eram redondos e enormes, como se te desafiassem o tempo todo a ver o mundo da mesma forma que eles.

– Sim, sem a poluição luminosa e tudo mais. Dá para ver a via láctea.

Ela soltou uma risadinha.

– Garoto da ciência, é?

Acho que devo ter corado.

– Não se preocupe, gosto mesmo mais dos nerds. Olha para o Ian, ali, por exemplo. À primeira vista o visual impressiona, né? Mas você já conversou com ele? Não sabe conversar sobre absolutamente nada, só fica balbuciando sobre álcool, churrasco e futebol o tempo todo. – ela revirou os olhos. – Como se todos nós já não soubéssemos tudo sobre esses assuntos.

Eu não entendia nada de futebol, mas decidi não comentar.

– Aliás, meu nome é Melanie. Qual é o seu?

– Leonardo. Mas pode chamar de Leo.

Ela sorriu.

– Ah, como a constelação, né? Legal.

Acho que devo ter corado de novo. Não, não era por causa da constelação. “Leo” é o apelido óbvio para qualquer Leonardo, Leonard, Leonel, Leôncio, ou qualquer que seja seu nome começado em, adivinha só, “Leo”. Mas tudo bem, não podia contrariá-la, não é mesmo? Até porque, era uma explicação muito mais legal para o apelido.

– Ele costumava ser o líder das constelações, sabia? Quando elas ainda tinham espíritos que andavam pela terra.

– O quê?

– Leo. O Leão.

– Ah.

Ela sorriu.

– O garoto da ciência não gosta de magia, é?

– Não é isso! É só que eu... Me distraí.

– Sim, sim, eu sei. Ninguém presta atenção no que eu falo. Estão sempre muito mais interessados na minha aparência do que em meu cérebro. Tirando a professora de história. Ela sim parece estar sempre interessada demais no que eu tenho a dizer. Tanto que minhas provas sempre voltam cheias de caneta vermelha. Ei, não é minha culpa se a Inglaterra teve vários reis Henry. Se fosse um só, talvez eu não tivesse dito que foi Henry VI que separou o Estado da Igreja. Foi um erro honesto.

– Sim, claro, um erro honesto.

Meu deus, como alguém tinha tanto fôlego para falar tudo aquilo de uma vez só?

– Enfim. Você sempre vem nessas festas?

– Não. Minha irmã insistiu e meus pais me fizeram acompanhá-la.

– Ah, sim. Meus pais também adorariam ter essa desculpa, mas como eles não se deram ao trabalho de me arranjar um irmão, têm que se conformar que eu vou sozinha mesmo.

Acho que devo ter sorrido, porque ela olhou para mim e sorriu também.

– Sabe, acho que a gente precisa tomar cuidado porque temos o fator John Green. E sabe como é. Ele matou gente em 50% dos livros deles.

– O fator o quê?

– O fator John Green. Sabe. Eu sou a garota misteriosa; garotas misteriosas aparecem em 75% dos livros dele. Você é o garoto nerd, o que também está presente em 75% dos livros do John Green. Acontece que em (também, é eu sei, tá ficando chato) 75% dos livros acontece alguma tragédia no final. Me acompanhe aqui: em Quem é você, Alaska?, a Alaska morre. Em A Culpa é das Estrelas, o Gus morre e a Hazel tá pra morrer. Em Cidades de Papel, a Margot simplesmente ignora o cara que cruzou a droga do país para ir atrás dela.

– Mas O Teorema de Katherine tem um final feliz.

O sorriso dela se alargou.

– Eu sabia que você sabia o que é o fator John Green.

– E você deve estar tentando bastante para ser esse mix de Alaska e Margot.

Ela gargalhou.

– Querido, eu não tento. Eu sou esse mix de Alaska e Margot que você está testemunhando. Para começo de conversa, eu já era assim antes de ele escrever as duas, então, eu ganhei.

Conversamos a noite toda, até minha irmã estar sóbria o suficiente e pedir para voltar para casa. Depois disso, voltei todas as noites de festa para a praia, só para ver se a encontrava de novo, mas ela nunca mais apareceu, e os amigos da minha irmã insistiam que não conheciam Melanie nenhuma. Achei estranho. Como alguém poderia esquecer aqueles olhos? Bastava que ela olhasse para você uma vez, e jamais esqueceria aqueles olhos. E ela mencionara que estudava com eles! Mas o que eu podia fazer? Eu era o forasteiro. Era eu quem estava parecendo maluco.

Até o final das férias, não a encontrei mais. Fiquei triste. Devia ter perguntado da primeira vez qual era o número do Whatsapp dela, ou se tinha conta no Facebook ou no Twitter. Como não perguntei, nunca mais teria a oportunidade de falar com ela.

Embarquei no trem para casa detestando minha vida. O que, vamos combinar, era mesmo bem digno de um personagem de John Green. Ri sozinho desse pensamento. Esse era o tipo de coisa que eu poderia ter enviado no whatsapp para Melanie. Suspirei e olhei pela janela.

E lá estava ela.

– Melanie! – gritei, batendo no vidro.

– O que você está fazendo, Leo? – minha irmã me perguntou, horrorizada.

– Tentando falar com a Melanie.

– Do que você está falando, Leo? Não tem ninguém ali fora.

– O quê? É claro que tem! Ela está bem ali!

Olhei de volta pela janela, e Melanie ainda estava ali, com um sorrisinho insolente, acenando para mim.

– Tchau, garoto da ciência. – consegui ler em seus lábios que se moviam vagarosamente.

Sentei no banco, chocado.

– Você não a está vendo ali, Lucy?

– Para de ser esquisito. Aqui é a plataforma, todo mundo já embarcou.

Mas Melanie continuou a acenar e sorrir para mim até o trem começar a se mexer, e Lucy continuou a insistir que não tinha ninguém ali. Desisti de questionar minha sanidade. De questionar a sanidade de minha irmã. Melanie estava ali. Eu sabia que estava. Podia vê-la tão claramente quanto podia ver Lucy sentada a minha frente, mascando chiclete e apertando teclas em seu celular. Então, apenas acenei de volta e sorri para Melanie, desejando do fundo do meu coração poder encontrá-la de novo no próximo ano.

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Thais Rocha se formou em Letras Português e Grego Antigo na Universidade de São Paulo. Sonhava em ser escritora desde os 10 anos de idade, quando começou sua primeira fanfic. Quatro anos depois, começou a escrever seus originais, sempre no gênero fantasia. Seu romance de estreia, Tykhe, publicado de forma independente, está disponível na Amazon.

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thati_rocha@hotmail.com

Thais Rocha

Facebook: /ThaisRocha1606

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O Presente

Camila odeia espelhos. Odeia porque eles refletem justamente o que ela não quer ver. Um acusador de feiura e mediocridade, o mais justo e verdadeiro de todos. Ele praticamente gritava “Camila, a criatura horrenda e gorducha, ousa pousar em minha frente”. Então ela chorava e depois fugia.

Mas Camila não era feia, nem medíocre e muito menos gorda. Feio era o seu interior nublado que afastava as pessoas, tornando-se um círculo vicioso cheio de feridas. Isso fazia a culpa lhe corroer.

No seu quarto não existiam espelhos, ela quebrou todos eles. Não gostava de festas ou de multidões, a vida não tinha graça. Sua mãe insistia em leva-lo para o psicólogo. A senhora vivida tinha certeza que sua filha tinha um grave problema. “Depressão”, as pessoas diziam. Talvez até anorexia, pois a menina não parava de emagrecer.

Nos piores dias, Camila não queria nem sair de casa. Nesses momentos ela contava com a ajuda dos seus amigos. Eles praticamente a arrastavam para fora. Vez ou outra até conseguiam a façanha de levá-la para uma festa, onde, raramente, ela se esquecia das próprias deformações. Havia um amigo em especial que fazia questão em sempre ir busca-la para a escola. Tiago tinha um carinho enorme por ela.

Era Natal, a árvore encantava os olhos de todos na sala. Presentes se amontoavam embaixo dela assim como as rizadas e cantorias natalinas preenchiam todo o lugar. A família e amigos de Camila comemoravam o nascimento de Jesus com uma ceia. Sempre acontecia de se ouvir os sermões das mães para os filhos que iam escondido tentar abrir os presentes antes da hora.

Embalagens se amontoaram no chão quando a troca de presentes começou. Camila deu uma camisa para Tiago e um conjunto de maquiagem para a amiga Julie. Ela recebeu de volta sapatos e perfumes, não que Camila fosse usá-los. A menina vestia uma bela e falsa máscara de agradecimento fingindo que aqueles eram os melhores presentes do mundo para ela.

O último presente estava embrulhado em uma embalagem simples de papel e endereçado a Camila sem remetente. Julie sacudia o pequeno embrulho soltando rizadas.

– De quem será? Um admirador secreto seu, talvez. E vem com um recado: “Para a mais bela. Que sua beleza seja eternizada”.

Camila recebeu uma velha máquina fotográfica da cor vermelha e, pelo visto, bem usada também. Era um aparelho velho com a tinta descascando aqui e ali. Poderia até funcionar, mas o primeiro impulso dela foi de querer jogar o presente pela janela.

– Não gostou? – Tiago perguntou notando o rosto triste dela.

– Odiei! Isso é uma piada de mau gosto, não percebeu?

– Não te entendo.

– Todo mundo sabe que odeio tirar fotos! – Ela praticamente gritou. Os convidados olhavam em sua direção.

– Mas nem conhece quem te mandou, Mila. Talvez a pessoa nem saiba disso.

– E por que não se identificou? Tiago, quer ela para ti? Se não quiser vou jogar fora.

– Ei, não faça isso! Guarde em algum lugar . Quem sabe depois não mude de ideia.

– Acho isso difícil.

Camila guardou todos os seus presentes. A câmera ganhou um lugar especial dentro do seu guarda-roupa debaixo de várias camadas de cobertores e roupas. Ela se sentia na pele de um assassino escondendo um cadáver de tal forma que não sobrassem nem as manchas de sangue para a polícia usar como pista. Em pouco tempo sua existência seria esquecida.

Começo de ano letivo e Tiago tem se mostrado ainda mais interessado por Camila, a garota era um desafio e tanto para o rapaz apaixonado. Ele não chegava a se declarar, pois sabia que isso iria acua-la. Os fantasmas da mente que a perseguiam também atrapalhavam. A seu favor estava somente o fato de que Camila passou a ser levada pela mãe para o psicólogo. Na terapia, a moça sabia que sua tristeza profunda era fruto da sua cabeça, só faltava acreditar nisso e ter forças para lutar contra.

No primeiro dia de aula, Julie mexia na bolsa da amiga procurando por uma caneta.

– Camila, isso aqui é mais bagunçado que o meu quarto. Como consegue achar qualquer coisa aqui?

– Procura direito. Tenho uma azul no bolsinho pequeno.

– Achei! Mas... O que é isso? Mila, por que você trouxe uma câmera?

– Como assim?

Nas mãos de Julie estava o que tanto lhe assombrou no natal passado. Um arrepio passou pela espinha de Camila.

– Como isso veio parar aí? Julie, guarde de volta.

– Ah, não seja chata. – A moça tentava entender como o equipamento funcionava. – Fazia tempos que não via uma dessas. Olha, tem até filme. Vou tirar uma foto.

– Nem ouse!

Camila escondeu-se e escutou o som da máquina disparando.

– A foto era minha. – Julie diz chateada com a amiga – Acho que ficou boa. Revela pra mim?

Desconcertada, Camila concorda em entregar a foto já revelada depois. Ela coloca a máquina de volta na sua bolsa. Pensou na mãe, “só pode ter sido ela”, mas por que a senhora faria isso?

A garota leva o filme para um tio fotógrafo. Ele promete entregar a foto no dia seguinte. Bem cedo, no horário combinado, Camila retorna ao estúdio recebendo um envelope do tio.

– Sua amiga é bonita. – Ele comenta. – Mas parece está doente.

– Ela está ótima de saúde. Porque acha isso?

– Olhe na foto e vê se não concorda.

O homem tinha razão, aquela não parecia nem de perto sua amiga. O rosto da mulher na foto era tão branco quanto o giz, os lábios finos e secos, tinha grandes e profundas olheiras e em alguns lugares até manchas roxas. Camila levou um susto ainda perguntou para o tio se ele não editou, de alguma forma, a imagem recebendo um “não” como resposta.

–Talvez seja algum defeito no filme. – Ele argumentou sem acreditar muito no que dizia.

Aquela era Julie sem retoques.

Camila foi andando para a escola, no ombro a bolsa que ainda carregava a máquina e na mão, o envelope. A vaidosa Julie, com certeza, iria odiar a foto, não seria surpresa se ela a jogasse fora assim que recebesse. Era muito estanho como a foto saiu. Isto estava lhe incomodando bastante. Um arrepio gelado passou pela sua espinha, isso sempre lhe acontecia em enterros, os funerais eram a segunda coisa que mais lhe davam pavor depois de espelhos.

Ela para de caminhar ao se deparar com uma multidão em frente a sua escola.

– O que está rolando? – Pergunta a uma idosa do lado.

– Alguém morreu. – Ela responde tentando ver por cima das pessoas.

– Uma estudante se matou. – Um outro homem diz.

– Uma estudante? – Camila então corre atravessando a massa humana curiosa empurrando todos que ficassem em sua frente.

Ela parecia já saber que encontraria a linda Julie, ainda de farda, com uma corda em volta do pescoço e com a mesma expressão da foto.

Foi suicídio, a polícia constatou. Não havia nenhuma pista sobre mais alguém na cena do crime. Julie amarrou uma corda na árvore e subiu em um banquinho. Ainda não estava esclarecido o que levou alguém tão jovem a tirar a própria vida.

Por três dias não houve aula. Por mais de um mês só se falava em Julie e no seu suicídio. Por quase três semanas, Camila não saiu do quarto.

Aos poucos a rotina voltava ao normal. Mas o luto permanecia.

– É péssimo pensar nela, mas não queria esquecê-la. – Tiago murmurou.

Os dois estavam no quarto de Camila lembrando o dia.

– Julie se matou por uma sábia decisão. – Camila diz amargamente.

– Está ficando louca?

– Talvez. Mas o que há de bom nesse mundo que faça valer a pena continuar acordando todos os dias?

– Por que diz uma besteira dessas?

– Olhe em volta, Tiago. E diz que você não vê o que eu vejo? A humanidade é podre. É tanta guerra, traição, assassinatos... me sinto suja também, parte desse mundo podre.

– Está cega, então. Vendo apenas o que quer ver.

– Você não sabe de nada!

Tiago escutava a menina sentindo o seu coração sendo quebrado aos pouquinhos. Decepção tinha um gosto e ele era ruim.

– Juro que houve um tempo em que eu tinha prazer em está do seu lado. Ah Camila... já não mais a mesma por quem me apaixonei.

Ele estava se declarando. Tiago seu amigo de tantos anos dizia com todas as letras que se apaixonou pela medíocre e feia Camila.

– Mas eu realmente não sei de nada.

O rapaz fechou a porta atrás de si com força, deixando Camila sozinha com seus pensamentos confusos.

A partir daí, Tiago começou a evitá-la em todos os lugares, na rua e até na sala de aula.

Aquela era a primeira vez que isso acontecia, semanas se passaram desde a morte de Julie, sua amiga foi visitar seu túmulo com flores e algumas confissões.

– Sinto saudades, Julie. Deveríamos ter combinado de irmos embora juntas, assim faríamos companhia uma a outra como sempre foi. Deveria ter me avisado... Nunca desconfiei dos seus planos, você que parecia amar tanto a vida. Por que se matou?

Ninguém a responderia naquela manhã solitária e fria no cemitério.

– Queria te entender.

Camila se abaixou para depositar as flores no túmulo. Uma fotografia oval de Julie lhe sorria tão serenamente que ela teve vontade de chorar.

– Era tão feliz, tão diferente de mim. Mesmo a felicidade fosse apenas uma ilusão, foi um crime seu ter decidido partir ainda mais daquela forma. Julie, o que te aconteceu?

A lembrança de Julie tirando uma foto dela mesma veio como a luz da máquina, rápido e cegante. Ela arfou. O seu coração parecia querer sair pela boca. Camila largou as flores e correu.

Ela entrou ofegante em casa indo direto para o seu guarda-roupa. Revirou roupas e lençóis, mas nada de encontra-la. Sua mãe entrou aflita no quarto.

– O que tem, menina? Por que entrou desse jeito em casa?

– Mãe, cadê aquela maldita câmera?

– Não leu o recado na mesa? Tiago estava precisando de uma emprestada para a festa de casamento do irmão, a dele queimou, sei que vocês não estão se dando bem, mas não achei que isso fosse chatea...

– Isso não podia ter acontecido! Meu Deus... o que faço? Onde é a festa?

– O endereço está no bilhete. Você vai para lá? Camila, chega de magoar seus amigos.

– Mãe, se eu não for – Camila tinha lágrimas nos olhos – nem amigos mais terei.

E foi.

Ela chegou bem a tempo de ver Tiago colocando um filme novo na máquina. Ele estava junto do primo que queria tirar uma foto do rapaz. Camila tomou a maquina das suas mãos antes que isso acontecesse. Os dois a olharam sem entender. Então ela puxou Tiago para um canto isolado da festa.

– O que faz aqui?

– Eu não tenho certeza... mas acho que foi isso que aconteceu com a Julie. A câmera a matou.

– Camila, você está bem? Tenho que te levar para casa.

– Não! Não, Tiago me escute, por favor! Sei que parece loucura... Foi a câmera. Ela apareceu na minha bolsa. Julie tirou uma foto nela antes de morrer. A foto... eu revelei e... Meu Deus, você não vai acreditar.

Camila contou o que viu a Tiago, suas suspeitas eram estranhas, mas tinham sentido.

– Sem remetente, Tiago. Ninguém sabe de onde ela saiu, pode ter vindo de qualquer lugar, de qualquer pessoa. E se tiver uma maldição?

Tiago demorou um pouco para acreditar.

– Precisamos nos livrar disso. – Ele disse. Camila sentiu um alivio tão grande que chegou a abraça-lo. O rapaz não entendeu o porquê daquele gesto tão de repente. Interpretou-o com outros olhos e isso o fez querer beijá-la. E foi o que fez. Ela não sabia se o empurrava ou se mordia. Na dúvida ela correspondeu deixando o beijo seguir.

Tiago e Camila quebraram a máquina à pedradas, os pedaços foram jogados em uma lixeira próxima. Não tiveram nenhuma pena disso. Eles ficaram juntos a manhã inteira e o comecinho da noite. Foi um dia inesquecível para os dois, pela primeira vez em muitos anos, Camila entendeu o que tanto ouvia dos outros “o que é bom é ser feliz, não importa como”. Ela encontrou a felicidade naquele momento ao se permitir amar. E aquela felicidade poderia até ser uma ilusão criada pela sua mente desesperado por um descanso, mas ela era a mais verdadeira e sincera de todas.

Voltou para casa respirando mais devagar. A calma lhe envolveu como um manto.

A renovação que vem com o Natal começou quase no inicio do mês de Carnaval. Camila se sentia outra.

Ela abriu a porta do quarto e então o encanto se quebrou.

Em cima da sua cama a máquina fotográfica repousava ao lado de dois papeis. O primeiro era um bilhete que dizia em letras bem feitas “À mais bela, para que nunca se esqueça que será sempre minha”. O segundo papel era uma foto, a de uma garota morta. Era Camila.

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Hileane Barbosa

hileanebarbosa@gmail.com

Hileane Barbosa divide seu tempo em duas paixões: a escrita e a sua graduação em Gestão Ambiental. Ela é de Campo Maior-PI, uma terra banhada pelo sol e rodeada de carnaúbas. Ama histórias, principalmente aquelas que desvendam um pouco do país verde e amarelo em que mora. Guarda no coração o sonho de publicar o seu primeiro livro.

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Os Muros

Aqueles Muros bloqueiam as nossas vozes. A nossa indignação é silenciada por aquelas grossas camadas de concreto, que não querem que nossa revolta chegue ao outro lado. Para nos calar, gritam com sua voz autoritária:

– Nós somos a lei e a ordem! Nossa voz é incontestável, pois somos a razão e o equilíbrio que impera em tudo. Somos aqueles que ditam as regras e constroem as verdades.

Infelizmente somos poucos. Nossa voz é fraca. Os muros são grossos e esmagam nossas palavras com sua força colossal. Há muito tempo atrás tinha mais gente para enfrentá-los, mas a maioria foi esmagada e tiveram suas vozes arrancadas.

As novas gerações, entretanto, foram transformadas em bichos dóceis. Eles arrancaram seus desejos e plantaram pedras podres em seus corações.

Essas pessoas andam pelas ruas como espectros. Seus olhares são vagos, e quando falam, reproduzem o discurso dos Muros, que muitas vezes os fazem brigar entre si, quando criam uma falsa rivalidade e jogam na multidão. Tornaram-se pedras podres, ficam brigando para defender seu ponto de vista sobre os dois grupos rivais criados, que assistem e se deliciam com isso.

Está anoitecendo para aqueles, como eu, que não foram infectados. Nossas palavras foram arrancadas cruelmente de nossas bocas. Estamos presos no limbo e não conseguimos falar. Andamos ao lado das massas, mas nossa voz não é ouvida por eles, que foram programados para não nos ver.

Os Muros conseguiram nos calar porque jogaram um encantamento poderoso que nos isola de todos, fazendo com que nos tornemos fantasmas. E assim vagamos noite adentro com nossos gritos mudos pelas ruas.

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Daniel Wachowicz

d.crowley@hotmail.com

Nascido em Taboão da Serra - SP, Daniel Wachowicz é formado em Letras e é professor de português e inglês, tendo feito diversos cursos de produção literária. Em 2014 fez o lançamento de seu primeiro livro de poesias “Convite ao abismo”, pela Multifoco. Atualmente estuda música na FPA (Faculdade Paulista de Artes) e uma de suas metas é musicar poesias.

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Davi Caldas

magicdavid12@gmail.com

Ansiedade

Davi Caldas é estudante de jornalismo na UERJ. Escritor, publicou o livro teológico Supostamente Cruel. Mantém o blog Mundo Analista, onde escreve artigos sobre teologia, política e cultura. Também contribui como articulista para o blog político Direitas Já! É aficionado pelas histórias de Sherlock Holmes

Ansiedade é sangue velozmente correndo

Fazendo cócegas nas veias

É corpo, em suor, derretendo

É coração preso em teias

 

Ansiedade é criança dos olhos brilhantes

É respiração ofegante

Que arde corta, queima por dentro

E te faz mais sem rumo que vento

 

Ansiedade é paixão pela vida

Incontrolável, Indomável, querida

É a sensação de estar perto do inatingível

É o homem próximo do maior nível

 

É a esperança da dança

É o desejo do beijo

É a demora do dia

É a futura nostalgia

 

Ansiedade é a noite estrelada

É a vida cercada

De alegria e esplendor

De quem encontrará seu eterno amor

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Turista do Passado

Setembro de 2020. O ano que mudaria definitivamente a vida do engenheiro Alan Vendramini. Ele marcara a data em seu calendário digital. O smartphone tocou o tema da vitória de Ayrton Senna em alto volume. A música perfeita para sua euforia. Ele saltou da cama naquele sábado, dia doze, para gravar a entrevista com a imprensa.

Dezenas de repórteres, de várias emissoras de TV, esperavam ansiosamente na sala onde fariam as perguntas. Os seguranças passaram um sufoco para conterem os curiosos. Queriam ver a novidade de perto, afinal a mídia fez uma pressão e tanto desde o hexacampeonato do Brasil. Nada comparava aquilo ao futebol, a não ser o orgulho do povo brasileiro.

No entanto, o laboratório permaneceria fechado. Assim como no futebol, ninguém expõe todos os segredos ao público. O objetivo era entreter, sem revoltar. Numa geração anterior, Alan estaria rodeado de microfones enormes, compostos basicamente de um cilindro por onde era segurado, um cubo e uma esfera por cima, a qual captava o som da voz. Nas faces do cubo, o desenho da logomarca da emissora. E a quantidade de fios seria incontável. Sem mencionar as filmadoras com fitas VHS. Agora, pequenos quadrados que cabiam na palma da mão, sem fios, faziam todo o serviço. Mas o tumulto humano… continuava o mesmo.

Alan respondeu a poucas questões. Seus cabelos grisalhos aos quarenta anos foram penteados para trás numa camada de gel, reluzindo com a alta definição das TVs. A principal pergunta, a qual teve maior satisfação em explicar, era como funcionava o equipamento:

―Bem, após anos de pesquisa, conseguimos a implantação do primeiro motor de dobra em uma nave espacial. Isso significa que nossos tripulantes poderão ir a lugares bem mais longínquos do universo. É o passo decisivo para a colonização do planeta Marte, já que a viagem será bem mais rápida.

―É verdade que essa nave será mais rápida que a velocidade da luz? ― perguntou um novato da TV Manchete HD, canal que ressurgiu das cinzas em 2019.

―As leis da física podem ser burladas, meu caro, assim como todas as leis do homem. A nave comprimirá o espaço a sua frente e expandirá o que está atrás, dando a ilusão de que superará a velocidade da luz. Mas é tudo questão de pontos de vista. A relatividade de Albert Einstein ainda é válida.

O momento crucial da conferência ocorreu quando dois jovens foram apresentados ao público. Gêmeos de vinte anos, chamados de Hélio e Hermes Santos. Loiros, saudáveis e atraentes, viraram celebridades instantaneamente. Foram selecionados entre muitos para participarem da primeira viagem na nave de dobra. Passaram por semanas de treinamento com profissionais em sobrevivência e adaptação no espaço.

No entanto, no dia da viagem, não permitiram filmagem ao vivo. Algo fora oculto da mídia até o último momento. Dentro do laboratório, os gêmeos ficaram abobalhados diante da espaçonave. Uma estrutura de metal longa e pontiaguda na frente, como um lápis, servindo de eixo a duas circunferências de muitos metros de diâmetro. Entre um círculo e outro, uma distância de uns quinze metros e mais ou menos no centro a porta de acesso, que se abria para cima lembrando o carro Delorean. Munidos das vestimentas apropriadas, os irmãos seguiram à plataforma de embarque. Só que um braço se pôs diante da passagem de Hermes:

―Você ficará aqui na Terra, meu caro. A surpresa que escondemos do público é o efeito que a velocidade provoca no tempo. Como comentei na entrevista, a teoria da relatividade de Einstein será colocada à prova.

Hélio não queria viajar sozinho, mas o dinheiro e fama falaram mais alto. Afinal, se algo desse errado no espaço e ele morresse lá, pelo menos o irmão ficaria a salvo.

O teto solar imenso foi aberto num clangor metálico. A nave foi inclinada até o bico ficar a sessenta graus em direção ao céu estrelado. Ali dentro, Hélio podia se mover por toda extensão de trinta metros da nave, mas não ficar totalmente ereto, mesmo se posicionando no meio do corredor. Ali ele tinha mantimentos para um ano de viagem, apesar de achar que ficaria só um dia no espaço. Com o oxigênio artificial, ele não ficaria aprisionado num traje de astronauta. As turbinas de propulsão contornavam a extremidade oposta da nave. Eram oito no total.

Claro que a mídia entrou nesse evento histórico de alguma forma. Diversas câmeras de alta definição no solo e no céu rodearam o instituto de engenharia espacial e exibiram ao vivo desde a abertura do teto solar até a decolagem. O barulho dos motores simplesmente encobriram a voz do apresentador do telejornal, extasiado com a cena. De relance a espaçonave parecia um foguete comum, porém bem mais fino. E aquelas circunferências giravam lançando flashes por todos os lados. A uma longa distância a quem as confundiu com dois discos voadores bem sincronizados um sobre o outro. Eles fariam o papel da dobra espacial, comprimindo e alargando o espaço, perfazendo um trajeto absurdamente maior.

O que eles não ficaram sabendo naquele dia era que só um dos irmãos embarcou. Enquanto Hermes se lamentava naquele laboratório engolindo o choro, a quilômetros dali, Hélio ficou pálido e tremendo. Não teve tempo para se lamentar ou retroceder. Ele estava sozinho no primeiro voo daquele tipo de nave, sem saber se chegaria vivo ao espaço ou morreria no caminho. Uma cobaia em todos os sentidos. Todo o equipamento operava em piloto automático, controlado por dezenas de técnicos em diferentes pontos do planeta. Rastreado como um fugitivo perigoso, Hélio se sentiu menor que um átomo, ou melhor, um neutrino, ejetado da Terra como poeira. A aceleração aumentou gradualmente. Ali dentro ele não tinha noção da velocidade, o jeito era confiar nos painéis de controle. Ponteiros giravam de maneira tensa. Alguns tremiam, como se algo estivesse errado ou não fossem capaz de interpretar corretamente os dados recebidos.

Duzentos mil quilômetros por hora. Foi quando o coração do jovem aventureiro retomou os batimentos normais. Embarcou com seu relógio de pulso, mas como decifrar o mistério do tempo ali dentro? A decolagem foi às dez da noite do dia treze e quando ele olhou de novo, passara meia hora. Mas para seu irmão, também seriam 10:30hs?

Quando os solavancos do primeiro impulso amenizaram, o cinto finalmente foi destravado e seu traseiro se ergueu da poltrona. Aos poucos, ele foi conhecendo todos os componentes mecânicos e elétricos do foguete. Lera muito antes de aceitar essa experiência insana, e agora também tinha muito o que ler. Todas as suas distrações foram inseridas nas salas da nave, inclusive um quarto com cama no canto mais silencioso. Tinha livros, TV por satélite e o videogame Playstation 7. E para suas necessidades biológicas, um cantinho especial. Ele não se importou tanto em descobrir aonde iam seus dejetos após a descarga ou de onde saía a água com a qual se banhava e cozinhava num forninho elétrico. Contanto que não fosse a mesma água que levava as impurezas de seu corpo e às vezes até o sêmen, resultado das fantasias com a namorada, que se encontrava tão longe.

Seu objetivo era entender por que tantas coisas foram trazidas sem que ele soubesse, inclusive todas as suas roupas e as de Hermes. Quanto tempo duraria tal viagem? Na cabine principal, havia um microfone e um rádio do qual ele ouvia instruções vindas da Terra. No entanto, quando ele perguntava quando o trariam de volta, a comunicação era interrompida.

Quando ele calculou ter viajado por uma semana, a TV parou de funcionar. Riscava os dias num calendário de papel, felizmente ainda distribuído devido as propagandas das empresas que os encomendavam. Em certo momento, não sabia quando riscar o próximo número, pois olhando pelas janelas, parecia sempre noite lá fora. E seu relógio de pulso também parou.

Sozinho, começou a se descuidar da aparência. Barbas e cabelos ganharam contornos em seu rosto macilento. Quando a comunicação com a Terra se tornou precária, ele se arrependeu mortalmente de ter aceitado essa experiência. Perguntou do irmão, dos pais e da namorada, várias vezes por dia, e sempre recebia a resposta de que todos estavam bem, mas nunca falava com eles.

A pressão psicológica passou a mexer em seus nervos. Em cada orifício no teto da nave, ele via uma câmera mostrando todas as suas ações, seja dormindo, comendo ou tomando banho sem o menor conforto, agachado para receber o jorro de água na cabeça. Tudo mostrado ao vivo aos terráqueos, um reality show maluco.

Porém, o que mais o deixou paranoico foi a informação do painel de controle. Apontava 299.000 quilômetros por segundo. Será mesmo que ele estava a quase na velocidade da luz, ou era uma alucinação ou brincadeira cruel? A quanto tempo ele não conferia essa mensagem? Perdeu a noção das horas de sono, as anotações na folhinha, quantas refeições fizera, de tudo.

O aventureiro só queria voltar a Terra antes que enlouquecesse. Estava por conta própria. Com todo o conhecimento adquirido antes e durante a viagem, ele desativou o piloto automático e passou a controlar o foguete. A sensação foi de fazer uma curva terrivelmente fechada. Seu corpo, cerca de dez quilos mais magro, quase foi jogado para o canto côncavo do perímetro da nave. Não tinha certeza que girara o suficiente para fazer o caminho de retorno, mas os indicadores positivos que pareciam uma bússola o deu algum pingo de confiança. Mantendo a velocidade estrondosa, contaria que visualizaria sua terra natal em breve. O medo era não poder frear a tempo e se chocar como um asteroide que poria fim a humanidade.

Ao tomar as rédeas de seu futuro, Hélio não conseguia mais dormir. Nem poderia, com o temor de não pousar aquele lápis espacial a tempo. Ingeriu todos os estimulantes que trouxera, os quais usava antes das baladas noturnas com a namorada. Fora os litros de café. Na ponta afunilada da nave, onde ele entrou desvendando a senha da porta, ele via o espaço diante de si, passando como riscos brilhantes.

A Terra surgiu como um ponto branco no meio do nada. Nessa hora ele desligou todos os motores e preparou o trem de pouso. O planeta cresceu gradualmente e ele mirou o pouso no oceano Atlântico, bem próximo a praia. Foi a etapa mais difícil do processo. Mas ele teve sucesso nisso. Brecou quase totalmente antes de se chocar na água. As ondas não se tornaram ameaça. Os círculos vazados do foguete o fizeram flutuar como uma boia.

Hélio abriu a porta Delorean, nadou alguns metros e perdeu a consciência na praia. O esforço físico e mental foram demais para ele. Quando acordou, estava num hospital subterrâneo. Um médico de aspecto simpático o recepcionou:

―Felizmente você está vivo. Mal pudemos crer quando te resgatamos e conferimos suas digitais.

―Onde está meu irmão, meus pais, minha garota… ―sua voz estava rouca, já que há muito não falava com alguém.

―Deixarei outra pessoa responder sua pergunta.

O médico fez um sinal em direção a porta do quarto e um senhor corcunda de cadeira de rodas motorizada entrou. Era careca, pálido e a pele do rosto encarquilhada. Sua voz era pouco mais que um sussurro. O paciente resgatado sentou-se e o observou:

―Que bom vê-lo de novo, maninho. Era meu último desejo antes de partir.

―Você não pode ser Hermes. É IMPOSSÍVEL! ―gritou.

―Estamos em 2100, meu caro. Você envelheceu um ano, enquanto nós oitenta. A teoria de Alan estava certa. Posso dizer que só vivo ainda porque o governo foi muito caridoso comigo, por ser o irmão gêmeo do primeiro humano a embarcar numa nave de dobra. Já trocaram todos meus órgãos internos por novos, exceto o cérebro. Me neguei a virar uma máquina ou correr o risco de perder as lembranças de quando você decolou. Isso merece uma comemoração.

Hermes pressionou um botão e a famosa música da vitória de Senna tocou. O toque do celular de Alan eternizado naquele projeto especial, desde seu falecimento em 2028, vítima de enfarto. Quando os novos pulmões do gêmeo falharam e ele teve uma crise de tosse, Hélio se convenceu de que nada tinha a comemorar: perdera os pais, a namorada e via o irmão de cem anos definhando diante de si.

Ele quis voltar a praia, restaurar a nave e arriscar viajar para o passado. Isso se não tivesse sido dopado e perdido todas as lembranças de antes da viagem. Um presente de despedida de Hermes. Ou será que fora pago pra isso?

Detalhes atuais num futuro distante.

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Rone Cristiano da Silva

ronecsilva30@gmail.com

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Trabalha com processamento de dados, é escritor nas horas vagas. Atualmente publicou alguns contos do site da Amazon e está lançando uma pequena coletânea de contos Além da Fogueira no site Clube de Autores. Para 2016, planeja um novo romance de fantasia, por ora intitulado O Universo de Darker. Seu sonho é compartilhar suas histórias para mais e mais pessoas e adquirir mais experiência na área literária.

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É uma revista digital de jornalismo literário que abre espaço para escritores iniciantes divulgarem seus trabalhos e entrarem em contato com o mercado literário, que é representado pelas grandes editoras, além de crescerem em sua arte.

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A escolha dos textos

Cada edição será construída em cima de um tema. Os textos a serem publicados serão escolhidos pelo Conselho Editorial, com base nas regras indicadas no edital publicado no site.

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