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Autores

Fernanda Queiroz

Robson Silva Alves

Eduardo Mischiatti

Jessyca Santiago

Hannah Andressa Delgado

Allan Caetano Zanetti

Alana Regina

Diego dos Santos

Maria Vaz

Hozana Bidart

Silvio Francisco

Mickael Alves da Silva

Kamila Veronese

Natanael Otávio

Poeta Jardim

André Macedo

Glaucia Brum

Anderson Lobo

Nayara Rossi

Ricardo Lacava

Adeval de Andrade

Tamara Chagas

Gabriel Alencar

Rafael Santana

Nilmara Tomazi

Lucas Nangi

Caliel Alves

Hedjan C. S.

Revista

nº 12

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Equipe

Editora-chefe

Mayara Barros

Conselho Editorial

Claudia Bianco

Igor Batista

Marina Brandão

Mayara Barros

Vitória Pratini

Projeto Gráfico

Claudia Bianco

Marcelle Andrade

Mayara Barros

Victor Vicente

Vitória Pratini

Jornalistas

Claudia Bianco

Marina Brandão

Mayara Barros

Vitória Pratini

Colunistas

B. Craus Nantai

Capa

Igor Batista

Revisão

Claudia Bianco

Contato

 

contato@revistavessa.com

www.revistavessa.com

 

Fone: (21) 992335745

Facebook: /revistavessa

Twitter: @RevistaAvessa

1

A

nov/dez 2016

A revista Avessa é uma iniciativa independente de graduandos do curso de Jornalismo da UERJ. Os textos divulgados são de inteira responsabilidade de seus autores e não necessariamente refletem a opinião da revista. Não é permitida a reprodução dos artigos e textos aqui publicados.

Nº 12

Nov/Dez 2016

Editorial

Queria agradecer a todos que fizeram dessa edição uma realidade. Pela primeira vez em dois anos, tivemos mais de 100 inscritos e como não estávamos acostumados com essa quantidade de textos, o processo demorou mais do que o esperado. Também cometemos alguns erros nessa edição e somos infinitamente gratos aos autores que nos chamaram atenção para que pudéssemos corrigir e seguir em frente melhores e mais fortes do que antes.

Mais uma vez, a Revista Avessa termina um ano com chave de ouro. Os textos que aqui figuram são incríveis e muito bem escritos. Aproveitem a leitura, que eu posso garantir que vale a pena.

E espero que ano que vem vocês continuem aí, nos ajudando a cuidar desse cantinho de incentivo à literatura nacional.

Que 2017 seja ainda melhor!

nov/dez 2016

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A

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Mayara Barros

Editora-chefe

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poesia

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poesia

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Catavento

Canção do Primeiro Amor

Abra a Porta

Robinson Silva Alves

Cadente

Eduardo Mischiatti

Fernanda Queiroz

Jessyca Satiago

Hannah Andressa Delgado

Cotas

Desconectado

Estatística

Eu Sou

Felix Culpa

O Livro de História Te Falou da Minha Cor?

Alana Regina

 

Allan Caetano Zanetti

Diego dos Santos

Maria Vaz

Hozana Bidart

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poesia

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poesia

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Homenagem ao Amor Platônico

Mickael Alves da Silva

Quem Dera, José...

Alvorada Delirante

Kamila Veronese

Silvio Francisco

Natanael Otávio

Poeta Jardim

Janela Anônima

Restaram

Vinte e Sete

Tarde de Literatura Nacional

Apenas um Pouco

Resenha Avessa

A Cartomante de Assis

Mayara Barros

André Macedo

B. Craus Nantai

PAtrícia Brito

Glaucia Brum

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29

artigo

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coluna

33

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prosa

poesia

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prosa

prosa

prosa

prosa

prosa

Nayara Rossi

Ao Encontro da Plenitude

Ricardo Lacava

Anderson Lobo

Adeval de Andrade

Tamara Chagas

Terapia Ortográfica

As Gárgulas da Catedral de Luz

Carta

Conversas

Garrafa de Vodca

Gabriel Alencar

O Teatro de Silêncios

Espelho

Oradoras da Morte

Os Praças Vão à Guerra

Tarde de Trabalho Atípica

Rafael Santana

Lucas Nangi

Caliel Alvez

Hedjan C. S.

Nilmara Tomazi

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63

prosa

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prosa

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prosa

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prosa

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Fernanda Queiroz

Canção do

Primeiro Amor

“Meu nome é Fernanda, tenho 18 anos e uma insaciável avidez por literatura. Influenciada por diversos autores - em especial Rimbaud e Rilke, que revolucionaram minha forma de ver o mundo e a poesia -, comecei a escrever aos 14 anos. Vencedora de diversos prêmios locais e nacionais, sigo convicta de que minha jornada no fascinante mundo da poesia está apenas em seu início.”

Amor, amor meu!

Pra quê tanta melancolia?

Se no despertar de cada dia

Padece uma velha aurora

Floresce uma vida de glória

E esperam-te os olhos meus...

 

Amor, amor meu!

Onde jazem os velhos dias?

Em leitos do amanhecer?; que se engraçam

Com tua presença tardia; que se enlaçam

Nos portões de tua alegria

Em tua ânsia feliz por viver.

 

Não choras, amor meu

Que esta vida é um lar passageiro

Que teu riso é meu líder e meu guia

Que teu ser é meu maior devaneio

Que tu és minha melhor poesia

E amar-te é um sonho ligeiro.

 

Amor, amor meu!

Em versos te fiz uma canção; deixaste

Este torpe coração calar-te? Hei de dizer-te, amor:

Tu és minha arte, minha parte, meu mártir

Hei de amar-te e fazer de teu ser minha essência

E, vivendo-te, colher os lírios de minha existência.

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A

nov/dez 2016

Abra a Porta

Meu nome não importa

Por favor abra a porta

Apenas ouça meu pedido

 

Escute meu grito

Sinta minha dor

Meu gemido

 

Estenda tua mão

Sacie minha fome

Com um simples pão

 

Não me mande embora

Sou aquele que chora

A lágrima esquecida

 

 

Um esquecido

Menino de rua

Renegado pela vida

 

Quero apenas um lugar

Uma família

Um lar

 

Que console

Meus tristes ais

Sonhos perdidos

No frio cais

 

Quero um destino

Quero ser menino

Quero sonhar

Ter esperança

 

 

Quero apenas sorrir

Quero ser criança.

nov/dez 2016

A

10

Robinson Silva Alves

“Casado, pai de dois lindos poemas, meus filhos Salete e Vinicius. Resido na cidade de Coaraci-ba,

tendo diversas premiações literárias em concursos de poesias, bem como publicações em Antologias. Sou formado em

Filosofia e atualmente estudo na Universidade Federal do Sul da Bahia. Que essa poesia abra as portas dos nossos

corações para essas crianças.”

hiatos@bol.com.br

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eduardo.mischiatti@gmail.com

Eduardo Mischiatti

Cadente

“É a primeira vez que participo de um concurso. Em parte porque o conteúdo da primeira edição da Revista me agradou muito. Depois, porque resolvi conceder habeas corpus a alguns textos que tinha engavetados!

Sou médico pediatra, residente em Curitiba. Tenho, por herança materna, a leitura como lazer. E, em particular, a poesia, pelo livre protagonismo das palavras.”

Fui libertada

num breve suspiro.

Para ti fui moldada.

De alguém, um delírio.

Procurei, atrevida,

teu peito aquecido.

Mas teu coração se fechara,

num impulso contido.

E tão desolada,

com um soluço, espantada.

te vi negar-me o abrigo.

 

Se tudo no espaço se sustenta,

ao mesmo tempo em que desaba.

Se num momento o que vemos,

num outro já não há nada.

De súbito, não seria diferente!

 

Qual corpo cadente,

no firmamento a vagar,

esta paixão em agonia

quedou-se, por ironia,

deixando um risco no ar.

11

A

nov/dez 2016

Catavento

Catavento

Conta o tempo,

O momento

Que passou.

 

Foi o riso,

Foi a lágrima,

Me pergunto,

“O que restou?”.

 

Conta o tempo

Catavento,

Mesmo esse

Tão nublado!

 

Tanto amor,

Quanto amor!

Escondido,

Bem guardado.

 

Canto triste

Triste Encanto

Tão perdido

E renegado.

 

Canta o tempo

Catavento!

Vem lembrando

O que já foi.

 

Foi o sonho,

Foi o pranto,

O amor

Nem sei se foi…

nov/dez 2016

A

12

Jessyca Santiago

Natural de Recife, 1988. Bacharel em Letras pela Universidade do Rio de Janeiro e professora de idiomas no RJ. Possui textos publicados em antologias e revistas literárias.

agatha_silfo@hotmail.com

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Hannah Andressa Delgado

delgado.andressa@bol.com.br

Cotas

Nascida no Rio de Janeiro, Hannah demonstrava desde pequena uma inclinação pela arte tendo a poesia e, mais tarde o Ballet, como suas maiores paixões. Aos 11 anos, escreveu seu primeiro livro e, desde então, a escrita ocupou cada vez mais espaço em sua vida. Hoje, aos 17 anos, busca aprimorar sua arte a fim de transmitir ao mundo um pouco de seus sentimentos.

Meu cabelo armado

Foi criado para lutar

Contra os padrões que não quero

E não vou me encaixar

 

Minha pele escura

Pelo sol foi beijada

Resistiu a dor e tortura

Ao longo da estrada

 

Minha melanina

Me mantém menina

 

Meu corpo, com muita beleza

Aprendeu a gingar minha tristeza

 

Eu, com ritmo no pé

Levei o Samba

A competir com Ballet

 

Nesse país de cotas,

Somos todos iguais

Só que uns menos

E outros mais

 

Nesse país de cotas,

Continuam a nos subestimar

Mas agora nos dizem

Que não precisamos lutar

13

A

nov/dez 2016

Desconectado

Disse que fui a uma festa no sábado

E apenas de manhã o agito terminou

Só que ninguém acreditou em mim

Pois nas redes sociais nada constou

 

Tem que estar registrada a presença

Por meio de uma foto para ela valer?

Preciso informar que estou no lugar

Para a turma toda finalmente crer?

 

Ando desconectado da vida virtual

E andando bastante pelas calçadas

Aí há quem diga que estou sumido

Porque não tenho palavras tecladas

 

Vai ver o real não vale tanto assim

À medida que fica nesta dimensão

Se tornou mais importante aparecer

Do que curtir o momento em questão

Tudo bem, permanecerei em offline

Encontrando uma razão fora do digital

Faço jura de pés juntos que eu existo

Com um sinal de fumaça ao pessoal.

nov/dez 2016

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Allan Caetano Zanetti

Allan Caetano Zanetti, nascido em Bento Gonçalves/RS em 10 de fevereiro de 1996, tem interesse pela escrita desde a infância. Começou a escrever poesias na adolescência e, desde então, tem participado com êxito de concursos literários de abrangência nacional e/ou internacional.

allan_zanetti@hotmail.com

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Alana Regina

 

alanareginasm@hotmail.com

www.alanaregina.com.br/

Estatística

Sergipana, autora de “Maria Rejeitadinha e Outros Poemas” e de “Sob Encomenda: Contos”. Mestre em Estudos Literários.

Capitus, Julietas, Macabéas

Emmas Bovary, Antígonas, Medeias

Dalloways, Sallys, Aurélias

 

É hora das estrelas e das ciganas,

é tempo das envenenadas

 

Tempo das vertigens,

Das colagens

Das coragens de dizer:

não.

 

Mortas, feridas, mutiladas

pa-ra-li-sa-das

 

É tempo do movimento,

dos ventos com cheiro bom

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nov/dez 2016

Dias de erguer as placas,

imprimir as notícias,

gritar na televisão

 

Nas gavetas, a estatística

Nos entrega – todo dia –

Mais de uma no caixão

 

Vão com elas tapas,

xingamentos,

agressão

 

Conosco ficam as memórias,

arquivos,

resignação

 

O esconderijo é debaixo do nosso nariz:

tem lágrima no fogão,

tem sangue no feijão

e aquele ali

está com cabelo na mão.

nov/dez 2016

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Diego dos Santos

orfieu@hotmail.com.br

Eu Sou

Diego dos Santos, ou como gosta de ser chamado, Orfieu, tem 21 anos e atualmente é estudante de Letras na UFMS de Campo Grande. Publicou seu primeiro livro (Os Contos da Rua de Cima) no começo deste ano pela Editora Multifoco e continua escrevendo novos projetos

Não quero ser decifrado.

Eu pretendo aceitar o direito de manter-me calado.

De manter-me indecifrável.

Eu sou um enigma,

Sou mais complexo do que você imagina.

Eu tenho mais peças do que meu quebra-cabeça precisa.

Acredito que eles não aceitarão esse desafio,

Pois sabem que se perderão nesse grande labirinto.

 

Sim, sou uma ilusão.

A vida é uma grande ilusão.

Nada é real, nada é novo.

Nem mesmo o interior de um ovo.

Minha voz será ouvida pelo povo,

Ela retumbará como o som de um trovão.

Eu sou o que eu sou e, mudar-me,

Ninguém jamais ousou.

 

A vida é uma cômica tragédia,

Uma eterna rádio novela.

Se pretendo respirar,

É agora ou nunca.

Eu sou o que eu sou,

E nada mudará minha essência.

Ela há de ser sempre única,

Pois já fora totalmente construída a minha estrutura.

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A

nov/dez 2016

Felix Culpa

Há pessoas que aparecem,

se cruzam

e não se esquecem:

calma, chama

e carinho sem fim.

Há pessoas que levam,

só pelo que são,

pedaços de mim.

nov/dez 2016

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Maria Vaz

Nasceu em 1990, no norte de Portugal. Divide o amor pela poesia, a literatura e a arte com o Doutoramento em Ciências Criminais. É colunista do blog luso-brasileiro de literatura ‘letras in.verso e re.verso’ e escritora de poesia e pensamentos soltos no blog ‘the philosophy of little nothings’

maria-vaz100@hotmail.com

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Hozana Bidart

www.facebook.com/bidarthozana/

O Livro de História Te Falou da Minha Cor?

Carioca da gema, filha de Milton Bidart e Elaine Teixeira, cursa Administração na UFRRJ, poeta desde que nasceu e escritora desde às primeiras palavras. Aquariana, com ascendente em touro e a lua em peixes, acredita que nasceu, não para ser vista, mas para ser sentida.

O livro de História te falou

Da minha cor?

O livro de História te falou

Da minha cor?

Que é a cor do urucum que nasce em qualquer lugar

Da cor do jambo, da ameixa,

Essa cor vermelho-escura, que não é preta

Essa cor vermelho-escura que não entra na paleta

Essa cor-quadro que meu povo enfeita

Que cobrimos com a tinta que vem da natureza

Essa mesma tinta que cheia de química você custeia

O livro de História não te falou da minha cor

Não falou muito menos do meu avô

Pajé da minha tribo, que sabe de cor essa história

Essa história que cês não contam nos livros de história

A história verdadeira do dia que você chegou

A história do seu povo falando de um tal escambo

Onde nós oferecíamos nossa planta, nosso ouro, no amor

E esse povo veio com fogo pra convencer, como faz até hoje

Esse povo fedido a perfume, sem nenhum cheiro de pele

Esse cheiro disfarçado que não passa confiança

Desde o adulto, até a mais nova criança

Esse povo ambicioso, engajado

Que ousou destruir nosso passado

Tirar nossa terra, entregar nosso povo

pra sua ong branca cuidar

Tirar nossas ervas, nossas aldeias, nos desmatar

Junto com a floresta que vocês juram que vão recuperar

 

Meu povo cresceu junto da civilização

Depois de ser expulso pelos proprietários

Que chegaram junto com a outra nação

Dizendo que compraram a terra de uns bancários

Dizendo que tem assinatura que me manda pra prisão

Minha aldeia caiu na periferia,

Comeu da fruta que rolava da feira pro chão

Aceitou calado o arroz com feijão

 

Pra ouvir hoje em dia que não podemos ter internet, televisão

Falar gíria, comer em pé sujo, andar de carro, busão

Porque lugar de índio é dentro da mata

Que vocês demarcaram pra nos usar de profissão

Que vocês escreveram no livro de história

um romance de ficção

Uma fanfic sem graça, que nem vira animação, onde não fala

Da morte dos meus primos por não ter alimentação

Que não fala da fome dos meus tios por conta da demarcação

Não fala dos proprietários rurais que nos encarceraram

Que sequestraram nossas mulheres e crianças,

Que dizimaram nossa cultura e hoje se apropriam

Usando nossas palavras no seu hino,

Comendo nossas frutas, seguindo nossos ritos

Não fala dos nossos gritos e choros aflitos,

Não fala que a gente não vive mais em oca,

Não vive mais de troca, tem até alergia à muriçoca

A gente também anda na rua com medo de ser machucada

E o pior de tudo: essa tribo moderna

nem me deixa andar pelada.

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Silvio Francisco

Janela Anônima

Janelas anônimas, das quais posso ver,

Em noites avançadas e frias a luz amarela que brota de vocês.

E de tantas janelas anônimas, uma me chamou a atenção.

Uma vida, incógnita, misturada às incógnitas de uma multidão.

 

Por noites e noites apenas um brilho claro resplandecia,

Do seu televisor, aquecedor das minhas ideias vazias.

Eu sentia que a solidão era sua fiel companheira

E por vezes eu imaginava bater em sua porta, só de brincadeira.

 

Meu coração, se apertava,

Sempre que ela, no peitoril se debruçava.

A janela aberta estava, por pouco tempo a permitir.

Uma troca mais sincera de ares e olhares

que me fazia até sorrir.

 

Mas logo ela desistia e sumia,

Deixando a janela vazia.

Com meu coração,

Eu ficava a espera da luz que viria para iluminar nossa solidão.

 

Assim foram dias a fio, semanas e até um mês,

Quando repentinamente as luzes daquela janela

apagaram-se de vez.

Era estranho... Ainda mais triste a falta da sua tristeza.

Já não tinham mais janelas que denotassem qualquer beleza.

 

E aqui do lado, no apartamento ao meu colado,

Barulhos de moveis arrastando

e de objetos sendo desembrulhados.

No meu prédio vai ter uma nova janela,

Para compor outra vista.

Um ponto amarelado a mais nessa tela.

 

Quando o barulho se acalma,

Viaja Minh ‘alma

E meus olhos procuram a janela morta.

A esperança recém-alimentada

é dissolvida pela batida na porta.

 

Desconcertado, me lembro da campainha quebrada.

Vejo pelo olho mágico a imagem

longe de uma mulher plantada.

Meu coração dispara e minha mente custa a crer…

Estava à minha porta a dona da janela que jaz morta, esperando eu atender.

 

Quando me livro das trancas,

Finalmente abro a porta com olhar de criança.

Ela se apresenta e diz ser minha nova vizinha…

Eu me esforçava para ouvi-la, mas só pensava:

“Que sorte a minha”.

 

Precisando de ajuda, um pouco constrangida ela vem me pedir.

Eu, que sempre quis ajudá-la, sinto aquecer o peito,

isso me faz sorrir.

Depois de muito fazer por ela,

recebo um sorriso como forma de gratidão.

Quem diria que as luzes apagadas da janela triste,

significariam carinho em meu coração.

 

A moça, que da janela triste me inspirou compaixão,

Agora muito mais próxima me ensina a espantar a solidão.

A antiga janela continua inerte, ainda parecendo morta.

Porém aprendi que janelas são belas, mas mais belo é ter alguém batendo à nossa porta.

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Mickael Alves da Silva

Homenagem ao

Amor Platônico

Te amo de longe
Observo
E sofro
Mas sofreria mais
Se te tocasse
Rego, no íntimo
Ternura abstrata
Te amo distante
E gosto
De amar secretamente
Sem nenhum alarde
Te amo de longe
E sofro
Mas sofreria mais
Se não amasse

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nov/dez 2016

Alvorada Delirante

Ela o cortejava

bem de perto

da retina

Ele dizia

mesmo sem dizer

nada

E ela escutava

palavra por palavra

O silêncio é mesmo

envolvente

Na calada

da noite

ela se entregou

em devaneios

Ali mesmo

na mesa rígida

sobre um papel

qualquer

Suas mãos deslizavam

ora frenética…

ora suavemente

Emoções eclodiam

O ensejo seguiu

a madrugada

Exausta e saciada

Ao nascer o dia

ela deu à luz

a Poesia

Proveniente

a tudo que sentia

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Kamila Veronese

Natural de Marília/SP, nascida em 1979. Graduada em Biblioteconomia pela UNESP e grande apreciadora da literatura. Começou a escrever poesias recentemente, mas é uma paixão antiga. Participou de concursos tendo a publicação de suas poesias em duas antologias: “Sarau Brasil 2016” e “Vozes de aço, volume XVIII”.

kmila_veronese@hotmail.com

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Natanael Otávio

otavionatanael33@gmail.com

Quem Dera, José...

Nasceu em Bastos, São Paulo, em 1980. É autor do livro Reconstruções (2016). Publicou os contos O tesouro de John Símile (2013); e Pedaços do Mundo Rasgado – Alanis D. e o Esmerilhão (2016) em ebook na Amazon. É colaborador do site de Cultura Pop CultEcléticos e integrante do grupo de sarau Semeando Poesias.

Quem dera, José,

tivesse o sujeito

um coração de pedra,

a sua marcha não o arrebatasse,

não se apegasse a nada

e nem o contagiasse o amor…

 

Quem dera, José,

ardesse o mundo em chamas

– de amores, dores e sofrimentos –

e ele não se envolvesse…

Assim, não lhe restariam partículas

e nem o espectro de tudo que se criou.

 

Quem dera, José…

Quem dera, você,

aí em silêncio,

pudesse rimar, protestar,

enfrentar e zombar

dos outros e de tudo…

 

E tudo seria para o sujeito

menor que uma fagulha,

uma faísca de pedra contra pedra,

um breve crepitar,

um microlampejo,

e mais nada.

Mesmo que fosse

um incêndio na Amazônia,

uma explosão nuclear,

um homem-bomba…

Não lhe tirariam o sono

as estampas dos jornais:

o preço do petróleo,

a seca no nordeste,

os crimes dos políticos,

uma chacina de mendigos…

Seria o sujeito – sem mais –

indiferente a qualquer atrocidade.

Caminharia tranquilo,

sem ter aonde ir

– sozinho e tranquilo.

Assim permaneceria

mesmo que nunca chegasse

a nenhum destino…

 

Portanto, você,

você que se importa,

não se importe, esqueça,

descanse as retinas,

feche os olhos e petrifique-se

– seja intacto, portanto.

 

Cavalo para fuga já não tem mais.

Dispense também o terno de vidro,

o amor que nunca foi seu…

Permaneça no caminho…

Seja a pedra, José!

José, seja a pedra!

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nov/dez 2016

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Poeta Jardim

poetajardim@yahoo.com.br

Restaram

É natural do Estado do Rio de Janeiro. Poeta, musico, videomaker, possui cinco livros publicados. Jardim é um autor que busca em seus versos um encontro intimo com as pessoas e seu tempo.

restaram

estes olhos letárgicos

que não enxergam mais horizontes,

esta casa desmantelada,

estes poemas silenciados,

esta taça trincada,

esta familiaridade com o vazio,

repetitivo,

submisso,

esta escassez de palavras e vozes,

beatitude,

este corpo exausto de perseguir o não vivido

e esta alma descrente do eterno.

 

restaram

estas ruas onde caminho trôpego,

este medo de tudo,

esta aptidão em atirar

na lata de lixo

aquilo que já passou.

 

restaram

estas mãos

fracas,

paradas e frias e mortas,

estes relógios

feitos de segundas-feiras,

estas pilhas de imposições

acordos, pactos,

esta falta de sono,

esta extrema unção.

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nov/dez 2016

Vinte e Sete

Havia tanta vida a seu alcance

e ela, sem querer saber da vida,

cantava a melodia mais doída

da desventura de mais um romance

 

Negando-se a anistia de outra chance

retratava a sua alma perdida

vagando cega, em fúria desmedida,

que não há sentimento que amanse

 

Enquanto se esvaia a sua vida

De pé, pela plateia, era aplaudida

e a morte, com seu último tentáculo,

 

achou ocasião para enforcá-la

e a menina, em seus trajes de gala

não pode ver seu último espetáculo!

nov/dez 2016

A

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André Macedo

twitter: @andrelmacedo

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Tarde de

Literatura Nacional

N

o dia 22 de outubro, a Editora Illuminare realizou mais uma edição do seu evento Tarde Literária, dessa vez em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Sempre incentivando a literatura nacional, o evento contou com declamações de poesia, leitura de trechos dos livros de autores presentes, uma mesa de debate sobre assuntos atuais do mercado editorial e sorteios.

Também foram lançados oito antologias da editora: Psicopatas - Contos de mentes assassinas, Folclore Brasileiro - Contos regionalistas, OVNIS - Contos extraterrestres, Atrás das Grades - Memórias de prisão, Rir é o Melhor Remédio - Contos de humor, Tempos de Inocência - Contos de Infância, Escritores Malditos e Pets Companhia - Verso e prosa.

Apesar das dificuldades impostas pelo local e pelo clima, já que foi um sábado chuvoso e outros eventos estavam acontecendo em simultâneo, a Tarde Literária foi um momento de descontração para quem compareceu, houve oportunidade para todos falarem um pouco do seu trabalho e conhecer gente nova no ramo.

E pra quem interessar participar como autor das próximas edições, basta ser publicado pelo menos uma vez pela editora. A Illuminare está com chamadas abertas para as últimas antologias do ano e um prêmio literário para autores publicados.

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nov/dez 2016

Foto: Igor Batista

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Antologias Abertas:

http://editorailluminare.com.br/

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nov/dez 2016

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Mayara Barros

may@revistavessa.com

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Resenha Avessa

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resenha desta edição é especial, delicada, autobiográfica, onde encontramos sentimentos, amor, desabafos, encontros e desencontros com a vida.

A literatura tem um hábito de nos apresentar grandes escritores brasileiros, em áreas afins. Porém às surpresas maiores são aqueles que manifestam de âmbitos mais divergentes.

Para esta edição, destaco dois exemplares.

Os livros de sua autoria não tem uma cronologia de leitura, mas apreciar Mar de Sofia, um livro sublime de sentimentos, em seguida apreciar o romance: Estrada Real – O Caminho do Ouro onde encontramos desabafo, recuperação, fé e história, é uma experiência indicada e válida.

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Marlon Moraes, um baiano de Bom Jesus da Lapa e atual residente de Juiz de Fora, tem formação acadêmica em Engenharia de Produção, atua na Petrobras, mas é no mundo das letras que o autor nos encanta. Com um currículo literário louvável, e singeleza em pessoa, atua como Membro da academia de Letras Mineira e da Associação Cultura Luso-brasileira e literato de 12 obras, um romance, um infantil e 11 livros de fidedignas poesias.

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Mar de Sophia é um livro lírico, profundo e com um sentimento exorbitante.

Versos que de simples é nulo, pois a doçura de cada linha nos proporciona mergulhar em um amor poético.

As trocas de adjetivo e as metáforas são constantes em todo o livro que é dividido em 176 páginas, por dois momentos.

 

Porto um - Pretérito Perfeito

Porto dois – SINÔNIMOS

 

É uma apreciação autêntica e tênue. Algumas poesias nós suspiramos, outras compreendemos, mas em todas exaltamos a beleza das palavras, linhas, às vezes (a maioria e no caso da resenhista) à página inteira é ponderada com benevolência.

Alguns momentos o autor menciona cidades, como se a sua alma visitasse cada local, tentando escapar do amor que o faz corroer por dentro.

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Título: Mar de Sophia

Ano: 2011

Páginas: 176
Editora: Funalfa

Autor: Marlon Moraes

 

“Aqui se iniciou

A tua vida:

O meu destino.” (p.42)

 

 

“A 24 de julho de 1995, no Recreio dos meus olhos, Roberta Carvalho Alves me apresentou Amor... Doravante, iluminou os meus passos e esteve, como poesia, sempre comigo! Assim, o acaso abraçou o destino, colorindo as páginas do tempo com a vida (que sonhamos).” Nota do Autor (p. 171)

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Embarquei

Nos teus sonhos...

Naveguei a sua vida!

E me aportei aqui:

Onde a poesia se confunde

Contigo.

(p. 76)

Autobiográfico, não é um tipo de obra para lê apenas uma vez. Riquezas de sentimentos devem ser sempre estimadas por infinitos ensejos.

Título: Estrada Real - O Caminho do Ouro

Ano: 2013

Páginas: 341
Editora: Templo

Autor: Marlon Moraes

 

Das montanhas em Minas Gerais, entre as matas por São Paulo, ao mar de um Rio de Janeiro, percorri mais de séculos de estrada. Caminhei de Ouro Preto, redescobrindo as antigas vilas, o circuito das águas e a Serra da Mantiqueira, pela Garganta do Embaú, até Paraty. Juntamente com Pekison Cruz, um amigo plausível e um poeta amável; conheci muitas histórias!

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Estrada Real é um romance narrado pelo próprio Marlon, portanto biográfico, onde o autor delineia sua experiência, ao percorrer a caminho esplêndido em história e dor.

Os motivos por essa aventura é pessoal e intima; a riqueza desta narrativa fica por conta de cada pessoa, que o escritor junto com o amigo, companheiro de viagem e também poeta, Pekison, encontram em cada vilarejo, cidade, casa.

Para entender melhor antes de prosseguir detalhes sobre a obra. A Estrada Real é uma rota que sai de MG com direção ao litoral do RJ. Na época que o Brasil era colônia da corte portuguesa, a estrada era para dimanar ouro, diamante, café e gado. Hoje essa rota é um dos principais roteiros turísticos, dividido em 4 grandes trechos, oferecendo inclusive passaporte comprovando o roteiro percorrido e podendo fazer de várias formas, como: moto, bicicleta e até mesmo a pé.

Marlon Moraes optou junto com o amigo em conhecer o trajeto a pé. Loucuras de quem precisava fazer um alto reconhecimento bem peculiar dos percalços da vida. Ele descrente no amor, o amigo na fé.

Em vários momentos do livro encontram-se, desabafos, dúvidas, dor, choro.

Qual seria então o tempo certo? O caminho certo? Eu não conhecia a mim mesmo. Com as mais serenas palavras; aquele amigo me mostrava que o amor era livre, benigno e paciente...

(p. 18)

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Ouro Preto;

São Bartolomeu;

Glaura;

Cachoeira do Campo;

Santo Antônio do Leite;

Miguel Burnier;

Lobo Leite;

Congonhas;

Alto Maranhão;

Pequeri;

São Brás do Suaçuí;

Entre Rios de Minas;

Casa Grande;

Lagoa Dourada;

Prados;

Vitoriano Veloso;

Pouso Alto;

São Sebastião do Rio Verde;

Santana do Capivari;

Itamonte;

Itanhandu;

Passa Quatro;

Garganta do Embaú;

Vila do Embaú;

Cachoeira Paulista & Lorena;

Guaratinguetá;

Cunha;

Paraty

Mas não encontramos somente dor hiperbólico. A delicadeza da obra é visível também nas pessoas que ambos esbarram no trajeto. Encontra-se também simetria em cada localidade com suas deliciosas receitas, fazendo o leitor questionar se o autor não é um masterchef, assim como depara-se com a sublime narrativa dos recintos e localizações históricas.

As cidades percorridas foram:

No final da obra o autor fica maravilhado com o que conseguiu alcançar. A experiência incontestavelmente foi válida. Para nós leitores fica a lição de que sempre podemos recomeçar no momento de dor, conhecendo a si próprio.

Duas obras, dois estilo, onde conhecemos o escritor não somente na jornada da letra, mas também as profundezas de sua alma. Como dizia a saudosa Cecília Meireles “A arte de amar é a mesma de ser poeta” Marlon Moraes entende e conduz com perfeição as duas artes.

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Patrícia Brito

leiturasplus@gmail.com

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A Casa das Hostesses

Lançamento da Editora Pendragon

Originária dos Estados Unidos, a profissão de Hostess ainda é pouco conhecida no Brasil. Popular entre os japoneses, o cargo consiste no atendimento do cliente de modo diferenciado e não tem restrição de idade ou gênero, apesar de ser majoritariamente exercida por mulheres. Sempre educadas e alertas para qualquer imprevistos, as Hostess buscam maneiras de entreter seus clientes. Visando mostrar um pouco mais sobre essa função, a autora Deborah Felipe lançou seu livro na Bienal Internacional de São Paulo.

“Coloquei a história no Japão porque lá é mais frequente lugares que oferecem esse tipo de trabalho Lá não, eles estão acostumados a irem em lugares assim, como cafés com gatinhos para você brincar ou garotas para servirem seu café com um tratamento mais personalizado.” contou a autora.

Déborah Felipe começou a escrever cedo algumas poesias e fanfics, sob o pseudônimo de Sereny Kyle. Sempre uma leitora voraz, nutre uma grande admiração pelos escritores que a influenciaram, principalmente o autor Pedro Bandeira, com quem conversa por cartas e de quem é amiga.

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Sinopse

 

A Casa das Hostesses não é um lugar mágico, mas é o que mais se aproxima no nosso mundo, como se atravessasse uma dimensão e deixasse todos os seus problemas do lado de fora. É nesse lugar que o jovem Takeshi Souji, grande promessa do mundo empresarial japonês, se encontra depois de descobrir que sua noiva, às vésperas do casamento, o traía com seu próprio pai. Lá ele conhece Selina, uma hostess muito orgulhosa de seu trabalho, que consegue fasciná-lo de uma maneira que ele não acreditava ser possível.

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A Cartomante de

Assis

Cheguei da Rússia ainda muito nova. Meu clã, depois de rodear o mundo inteiro, acreditou ter encontrado neste país o lugar perfeito para estabelecer suas bases. Mas não demorou muito para vermos no olhar dos habitantes daqui a mesma repugnância encontrada em outros lugares por onde passamos. E, do mesmo modo, não levou muito tempo até vermos os primeiros curiosos entrarem através de nossas portas, com a intenção de descobrir o que o futuro reservava a eles. Na maioria mulheres, desesperadas para saber se encontrariam ou não a felicidade eterna ao lado de seus amantes. Quase todas, distintas damas da sociedade, as quais subiam com passos obstinados e sôfregos os degraus dessa escadaria pouco iluminada.

Cresci, assistindo àquelas mulheres dia após dia, uma após a outra, esticando as mãos de seda sobre as mãos enrugadas de minha avó, de minha mãe, de todas nós. Vi centenas sentarem humildes nessa cadeira e aguardarem com olhar de súplica a resposta que traria a elas o alívio das dores. Era como se fôssemos a revelação de um oráculo sublime. Olhos debulhados em lágrimas, vozes sibilantes, gestos convulsivos.

Mas, quando estas mesmas damas se deparavam conosco no meio da rua, nos viravam o rosto como se através do olhar pudéssemos as contaminar; e, convenientemente, se esqueciam de sua ida ao velho sobrado da Rua da Guarda Velha, quase rastejantes.

Agora eu sei que elas desviavam o olhar com medo de ter seu abominável segredo revelado diante de todos.

Meus ancestrais se foram, mas eu permaneci. Com eles aprendi a arte de ler nos olhos das pessoas o desejo secreto de seus corações, para restabelecer a paz de espírito e a esperança há muito tempo perdidos.

Ao contrário do que todos pensam, não leio nas cartas o futuro das pessoas e nem posso adivinhar seus destinos nas linhas de suas mãos. Também não sou capaz de alterar sua sina, pois nesta não tenho o direito de tocar. Apenas desvendo o presente e deixo a cargo de meus ouvintes a interpretação que agrade a eles.

Quando ela entrou em minha sala – mulher bonita, de gestos amplos, olhos vivos e curiosos, lábios finos e interrogativos –, percebi que estava apaixonada por um homem, pelo qual temia ser esquecida. Então, entre uma carta e outra, disse as palavras que ela necessitava escutar naquele momento de grande angústia. Como acreditava piamente que eu podia adivinhar todo o seu futuro, deu atenção apenas às palavras que convinham a ela; depois, seguiu seu caminho, tranquila e satisfeita, com o espírito apaziguado.

Dias depois, ele veio. Estranhei, pois conheço o coração dos homens e sei que estes não acreditam em nada, principalmente nas coisas do sobrenatural. Parecia envergonhado, deslocado; por pouco, teria fugido escada abaixo, se o desespero e a curiosidade não fossem maiores dentro de seu espírito perturbado.

Me olhava com aversão, enojado de minha aparência e de tudo o que o rodeava. Ao entrar pela porta, ainda carregava um lenço branco com o qual limpava as mãos que tinham acabado de tocar os corrimãos da escada do sobrado.

O homem exalava dos poros o fétido odor de medo, mesmo assim se acreditava mais limpo que eu e minha humilde casa. Por isso, foi muito fácil descobrir que naquele momento ele passava por um grande medo e que o motivo de sua visita era saber se aconteceria a ele algo de ruim ou não. Pela primeira vez, me encarou maravilhado, confirmando minhas suspeitas, ao me perguntar: “A mim e a ela?”

Tinha uma amante. Eis o motivo do medo. Eis a razão de seu desespero. Atrás de uma amante existe sempre um marido planejando como se vingar da desonra.

Calmamente, joguei minhas cartas. Cada movimento, o homem seguia com olhar curioso. Ao terminar de embaralhar e revolver as cartas, disse a ele as palavras que queria e precisava escutar:

— Nada acontecerá ao senhor ou a senhora a quem ama. Fique em paz, pois, o outro, o marido dela, nada sabe.

Imediatamente, o homem ficou aliviado; e, como paga, enquanto eu comia meu único luxo, as passas, me ofereceu uma nota de dez mil réis, muito mais do que eu costumava cobrar. E eu aceitei com um sorriso de dentes escurecidos que, daquela vez, pareceu não incomodá-lo.

Depois de nos despedirmos, acreditei que nunca mais voltaria a ver aquele homem. Mas, para minha surpresa, no dia seguinte reencontraria não apenas ele, mas também a mulher bonita de dias atrás.

As fotografias dos dois estavam estampadas, uma ao lado da outra, na primeira página do Gazeta. O nome do homem era Camilo e o da mulher, Rita. Eram amantes.

Perto da mulher, uma terceira foto exibia um rosto que eu não conhecia. O marido traído. Seu nome era Vilela, um ilustre juiz. E, mesmo sem ter a habilidade de ler as letras do noticiário, por instinto ou por dedução, soube imediatamente que aquele homem, único desconhecido de meus olhos, tinha assassinado a esposa e o amante num verdadeiro ato de vingança.

No mesmo instante, soltei minha gargalhada, a qual muitos tomam por demoníaca e agoureira, mas que, na realidade, expressa apenas a alegria do meu espírito quando se depara com algo admirável. Então segui meu caminho, carregando dentro de minha sacola as deliciosas passas, compradas com aqueles dez mil réis. Caminha depressa, pois ansiava saboreá-las antes da chegada do próximo cliente desesperado.

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Glaucia Brum

glausbrum@gmail.com

Musicista e Escritora publicou poema no site Plástico Bolha; seu conto tem um conto como parte do roteiro do curta-metragem A Má Notícia, da diretora Elza Cataldo; foi finalista do Prêmio Roteiro PUC, em 2011 e 2012, e, neste ano, foi finalista do concurso Carreira Literária, da editora Oito e Meio, com o romance “O Comensal”. Seu livro Folhas Soltas Numa Avenida Movimentada (autopublicação) foi editado e revisado por Paulo Henriques Britto e Claudia Chigres.

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Terapia Ortográfica

A terapia ortográfica em grupo acontecia todas as terças, à noite. Costumavam participar letras, sílabas, palavras, sinais de pontuação, enfim quase toda fauna da digníssima língua portuguesa. Sentavam em círculo em uma sala arejada, e desabafavam seus dilemas existenciais, sob a coordenação do, sempre cordato, “ponto final”.

— Sou vítima de xenofobia — o “W” desabafava — Nunca fui plenamente integrado pela língua portuguesa.

— Taxam-me de complicado! — o “que” se manifestava — Mas não sou complicado, apenas incompreendido! Entendem?

O “ponto final” ouvia com atenção, supervisionando as falas, sempre atencioso, calmo e paciente.

— Não sou pronunciado corretamente, constantemente suprimem minhas letras… — lamentou-se, certa vez, o pronome “você” — Em tempos áureos já fui conhecido como “Vossa Mercê”, mas hoje, referem-se a mim simplesmente como “cê”. Isso é ultrajante!

— Isso ocorre o tempo todo? — perguntou o “ponto final”.

— Não… depende do falante. Mas em alguns lugares fazem isso com muita naturalidade…

— Quer saber? — interrompeu o “H” com impaciência — O meu caso é muito pior! Nem tenho som próprio. Em boa parte do tempo, sou usado como mero adorno para vogais! E, sinceramente, estou farto de me juntar ao “C” para formar um som de “X”. E tudo isso para satisfazer os caprichos da onipresente norma culta!

— Calma, colega! — veio o “ponto final”, todo tranquilo — Não podemos culpar a norma culta. Ela existe para nos orientar!

— Orientar? Mas às vezes ela gera tanta confusão! — foi a vez do “hífen” se pronunciar.

— Norma Culta?! — disse, com desdém, a expressão “a gente vamos”— Faça como eu, assuma de vez sua relação com o coloquial. Só assim, eu pude ser aceita. E olha que alguns gramáticos já não me ignoraram!

— Sacripanta!!! — o faustoso “vós” não pôde deixar de exclamar — Abomino essa política de inclusão, a que somos submetidos! Uma expressão desairosa como essa aí, ser aceita?

— Olha, queridinho! Saiba que sou muito mais popular que você.

— Popular?! — o “vós”, com o dedo em riste — Isso não muda o fato de que és uma das responsáveis pela decadência da língua portuguesa! Gente da sua laia não deveria se misturar conosco. Não passas de uma grande aberração!

— ABERRAÇÃO? — Os ânimos se exaltaram naquele momento e houve o início de uma pequena discussão ortográfica. Houve até quem evocasse as indesejáveis palavras de baixo calão. E foi com algum trabalho que o, sempre inquestionável, “ponto final” conseguiu acalmar os presentes.

— Ordem, caríssimos! Não vamos nos esquecer de que alguns colegas ainda não se pronunciaram. “Trema”, você quer dizer alguma coisa?

— Eu sou a “trema” e atualmente não tenho mais função na língua portuguesa. — Desabou em pranto a pobrezinha e só foi parar quando alguém adentrou a sala, sem bater na porta. Todos olharam para o recém-chegado, que lançou um olhar confuso aos presentes.

— Desculpe… — disse o “zero à esquerda”, um tanto ruborizado — É aqui a terapia em grupo para números?

— Não, amigo! — disse o “ponto final” — Na sala ao lado.

— Coitado! — cochichou o “que” — Esse aí deve estar na mesa situação do “dois de paus”!

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anrolobo@gmail.com

http://poetaandersonlobo.blogspot.com.br/

Anderson Lobo

Um pescador (de estrelas), um domador (de palavras) e sempre aprendiz. Há algum tempo brincando de desenhar sonhos e outros pesadelos. Buscando inspiração nas coisas do cotidiano, entre bares e pessoas. Eis Anderson Lobo, cantador e/ou poeta!

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Garrafa de Vodca

Ela tinha seus próprios problemas: emocionais, psicológicos e familiares. A bagagem comum a todas as pessoas, independente de classe, sexo, raça, às vezes mais pesada para alguns do que para outros. Apesar disso, ou talvez por isso, um de seus desejos era diminuir todo esse peso que outros indivíduos carregavam. Ajudar um pouquinho nos problemas do mundo.

Serviço social, esse era seu curso na faculdade, fruto da vontade de poder fazer um pouco pelas outras pessoas. Antes dele, ela já sabia das mazelas da sociedade, mas elas não eram tão visíveis a seus olhos. O homem barbudo de calça rasgada e pele escura dormindo em uma caixa na esquina nunca fora mais do que um fantasma; as diferentes pessoas, homens e mulheres, que portavam apenas um lençol quando passavam pela rodoviária todos os dias não chamavam tanta atenção antes; ou as crianças de pés descalços pedindo esmola no sinal.

Com o que aprendia, com as situações que via e os exemplos que pegava, tudo isso se tornava mais claro. Era como se tivessem arrancado um véu de seu rosto, de forma que, agora, conseguia enxergar todos esses problemas com clareza.

Ela queria ajudar, não. Ela ajudaria àquelas pessoas! Disse isso no primeiro ano da faculdade, no segundo ela percebeu que seu curso não era exatamente sobre isso, ainda que tivesse ligação.

Ela se juntou a uma ONG e começou a fazer parte de projetos sociais, no entanto, ainda sentia que não era o bastante. Sentia que os projetos passavam rápido demais e que não ajudavam o suficiente. Sentia que, logo, o que fizeram perdia o sentido e tudo voltava à mesma porcaria de antes.

Sim, ela ainda via as pequenas coisas, os resultados – o homem da esquina, por exemplo, que eles ajudaram a voltar para a família e a largar as drogas -, mas ainda havia tanto por fazer: as pessoas da rodoviária, dos fundos dos prédios da zona nobre, as pessoas que passavam por sua rua revirando o lixo, todas elas precisavam de ajuda. Era tanta coisa para consertar. Mesmo sabendo que não podia ser responsável por tudo e que era fisicamente impossível para uma única pessoa consertar tudo aquilo, ela se sentia mal. O peito se apertava a cada vez que via uma criança com roupinhas rasgadas ou que ouvia sobre um caso de violência doméstica.

Tanta coisa errada e tão pouco tempo, pouca gente para auxiliar. Agora que todas aquelas situações pareciam saltar-lhe aos olhos, ela não conseguia mais ignorá-las, perdera a capacidade. Mesmo tentando fazer uma coisa de cada vez continuava sendo difícil se concentrar e deixar o resto de lado.

Terminou a faculdade e começou a trabalhar. Trabalhando, ajudaria mais pessoas! Por um tempo o aperto no peito diminuiu, no entanto sempre que via ou ouvia falar de alguém sofrendo, a sensação voltava. Queria poder fazer algo. Sentia-se culpada por não ser capaz de resolver tais problemas com um simples desejo, talvez uma varinha de condão, ou um único grito para organizar as coisas, para fazer com que o mundo parasse.

Mas não era fácil assim, nem seus problemas pessoais se resolviam com tal facilidade.

Seus problemas…

A bagunça na família… Como odiava pisar na casa dos pais e vê-los brigando por causa da avó, que estava doente demais para se cuidar sozinha! Também não podia fazer nada pela idosa, ou pela irmã, que virava o bode expiatório para todo o estresse do lugar quando ela não estava. Apenas quando não estava, porque bastava entrar na residência e o alvo passava a ser ela.

Era a filha que não fazia nada de útil, que escolheu um emprego que nem podia ajudar com os remédios da “velha”, ou com as contas da casa. Para que ela servia? Para nada. Inútil.

E depois de um dia ouvindo gritos e problemas jogados ao seu ouvido, sentando-se ao lado da idosa que a encarava como se pedisse por socorro, mesmo que não pudesse mais falar, ela simplesmente dirigia para casa o mais rápido que podia.

Só quando chegava em casa era que se lembrava do motivo de ter passado o dia fora. Encarava todas as coisas do ex-noivo ainda no apartamento, encaixotadas. Fincava as unhas nas mãos, deveria queimar tudo aquilo! Excluir aquele traste de sua vida, que ele ficasse com suas acompanhantes, não precisava de mais um peso nas costas!

Enterrava o rosto no travesseiro, talvez os problemas da sociedade fossem até mais simples do que as complicações em sua vida. Suspirava, só queria esquecer do mundo por alguns momentos.

No dia seguinte começaria tudo de novo. Ela sentiria a dor de todo o peso nas costas e quando comentasse com alguém, não sobre os problemas de família, mas sobre a responsabilidade sem fundamentos que sentia, ela veria um sorriso triste e receberia alguma frase complacente. “O mundo é assim”, eles diriam. “Uma coisa de cada vez, você não pode concertar tudo.” Ou o mais recorrente: “Esquece um pouco disso, vive sua vida”.

Mas não era essa a vida que lhe empurrava tais preocupações?

Então ela chegaria em casa novamente, depois de ter passado todo o estresse do dia e outras lembranças a invadiriam: as contas da casa, o buffet do casamento cancelado, o chá de casa nova… Ela teria que devolver tudo o que ganhara? As notas da irmã, a avó, o choro da mãe, o pai voltando de madrugada…

Foi quando recebeu um telefonema. Não costumava sair para beber, o pai era alcoólatra e ela prometera nunca se envolver com a bebida, mas se havia uma chance de deixar os problemas de lado…

Descia ardendo, não era bom, mas ela notou que o riso ficava mais leve, que era mais fácil brincar. Bebeu mais algumas doses com as amigas e quando a noite acabou, voltou pra casa. Teve uma ressaca no dia seguinte, mas até isso a impedia de pensar no que constantemente lhe incomodava.

No entanto, depois do anestésico as dores pareceram piorar.

Doações de roupas. Ela via os sem tetos que passavam para pegar as peças e podia jurar que seus olhos a procuravam. Podia visualizar as cenas, o frio que passavam, a fome, as dificuldades. Podia ouvir o choro das crianças e não conseguia fazer nada além de lhes dar roupas usadas.

Facebook. Um homossexual agredido em um bar, uma mulher morta pelo marido. E os filhos como ficavam? Menores usuários de drogas.

Os remédios da avó estavam acabando de novo. A mãe estava exausta e o pai mais agressivo. Ela levou a irmã para passear e a viu chorar no carro. A menor não queria conversar e a mais velha fingiu que nada aconteceu.

Ninguém para sair naquele dia, todos muito ocupados, todos em outros lugares. Ela comprou uma garrafa de vodca e voltou para casa. Antes beber sozinha em casa do que sozinha no meio da rua.

Novamente a ressaca no dia seguinte. Isso se repetia nos finais de semana, logo se arrastara também para os dias úteis. Depois de um tempo ela não percebia o novo problema que atraíra para si, ou para o qual fora empurrada pela vida.

Se houvesse simplesmente um jeito! Se ela conseguisse descobrir uma solução para cada problema! A única vontade dela era fugir daquele mundo de injustiças, tristezas e brigas. Isolar-se em algum local, em um cantinho de paz. Um tipo de paraíso que ela sabia só existir na própria cabeça.

Todos os dias de ressaca, às vezes ela não conseguia voltar para o trabalho.

Meninas sequestradas no oriente médio. Um menor que matava a família. Um sem teto que falava inglês, mas não tinha para onde ir. Um estrangeiro preso no país sem ter como voltar para casa.

— A vida é muito curta para você se importar com tudo isso. – Alguém lhe dissera. Não se lembrava quem.

A avó agora estava no hospital, o quadro piorara, entrara em estado vegetativo. A mãe entrou em depressão, o pai saiu de casa, a irmã não quis ir junto.

A cabeça estava tão cheia... Era noite novamente, já não importava se era meio de semana ou não. A cada dose da garrafa a cabeça se tornava mais leve, ela já não conseguia mais ficar sem aquilo.

Não. Ela não precisava largar a vodca. A bebida só a ajudava, ela podia parar quando quisesse.

Quando quisesse, mas ela não queria. Era tão bom sentir as preocupações irem embora e as inibições acabarem, mesmo que às vezes isso a fizesse cair no choro ou se encher de raiva.

Chutara as caixas com os pertences do noivo. Ex… Ex-noivo. Jogara-as pela janela e, tonta, caíra no chão do apartamento, rindo.

Ela não tinha outra escapatória, aquele era seu paraíso, mas ela podia parar quando quisesse, não era que bebesse tanto assim… Ela só precisava de uma dose de vodca para deixar à mente leve. Bom, talvez mais uma.

E outra, ainda não era muita.

Só mais uma dose.

Só mais uma…

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Nayara Rossi

Nayara tem 22 anos, e mora em Brasília. Tem como prazer a escrita, ela começou a escrever com fanfics aos 12 anos e foi evoluindo. Hoje escreve contos, tendo publicado na primeira edição da Avessa. Possui uma página no wattpad sob pseudônimo de PhantomKitsune.

nayararossisilva@gmail.com

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Ao Encontro da

Plenitude

Por que escrevo? É o jeito que tenho de apedrejar de tinta vastas ficções sociais. Iníquo mundo imundo! Efêmera espera injusta, sensação de soberania, que se sobrepõe à realidade e me traz a sensação de impotência. É desta solidão que respinga o azul de metileno sobre as folhas de papel. Calmaria de um mar remoto, depois da chuva. Perplexidade que acompanha os anos de vida. Que passam, mas que não cansam as mãos, apta e tempestuosa na arte de escrever!

Pensamento eminente, tempestivo, mas crônico como uma patologia silenciosa, que se arrasta por entre infinitas bifurcações; entremeaduras que se forqueiam por entre os vazios da indignação. Escura e invisível iniquidade, por entre os sábios e os esquecidos, toxidade de alta periculosidade, insalubridade ociosa, tendencioso dogma que constrange os mais dignos, e os menos abastados diminuem-se ainda mais!

Por conseguinte, me vem a incerteza. Rateio os fatos da vida e transpasso em versos ao papel? Ou de minha escrita lida, fatos da vida se concretizam de maneira símile? Aos indiferentes, segregadores de tudo que podem, e não podem! Abre, abre, ébrio mundo! Depois do maremoto, uma lona estica-se ao mar, e o vento passa alisando como uma mão de criança que alisa a areia! Então me acalmo. Vou dormir, acompanhado da solidão!

E do vertiginoso dilúculo de um ébrio sono, desperto, e me entrego aos regalos que a natureza nos concedeu neste mundo insólito. Insólito e imundo, caminho pela mata nativa, descalço desço um trecho lamacento segurando-me às raízes, filosofando sobre a arte, a arte da vida, a vida que gera a arte. E dos versos do papel, passo a me deslumbrar pelos versos das águas que caem. Despencam em queda livre por longos trintas metros, sendo carreadas pelo vento e voltando a tocar a lâmina d’água, formando o poço fundo da cachoeira, cavoucada por milhares de anos pela natureza para que pudéssemos nos imergir por completo. A sombra e o gélido ar úmido daquele pequeno vale tornavam o lugar lúgubre – embora gostasse de lugares assim – e deste modo, aproveitei o momento para tentar transpassar os versos da natureza para o meu pergaminho, onde sem sucesso, confortei-me em apenas senti-los. Foi quando, depois de viajar por pouco mais de oito segundos, e pela dinâmica dos astros, os raios de nossa vital estrela média invadiu aquele buraco obscuro, reluzindo diferentes tons, intensificando os sons, traçando contornos, tingindo as formas, e batendo em mim, entrando em amarelo cromo e saindo em cor de carmim. O perfume exalava pelos poros das flores, e com sua enorme boca a cachoeira falava, e a luz em meus olhos refletia, a humildade em silêncio escutava, e minha pele arrepiada sentia. E com minha arte daquele dia, nem nascida e já falecida, a qual não reluziu como aquele jogo de cores sobre meus olhos, descobri uma paisagem inusitada que todos aqueles elementos proporcionavam de espetáculo às minhas expectadoras vistas. Um quadro já antes pintado, aprimorado, nunca visto, lapidado há muito tempo, por um desconhecido pintor ainda não nascido. Uma obra completa, sublime, verdadeira obra-prima, que passou por mim. Voltei de meu sonho, onde os cinco sentidos pareciam juntar-se em uma única essência, naquela obra de arte em minha cabeça, gravada em meus pensamentos, aderida aos meus neurônios. E me lembrando de um velho amigo, questionei para dentro de mim mesmo: A vida imita a arte? Ou a arte imita a vida? Arte que me completa, arte que me critica! Letras que descrevem o invisível, pincéis que deslizam em diferentes tons, expressam o antes inimaginável, transmutando poesias em forma de sons! Advinda de uma criatividade sobre-humana, alimentada pelo rol de heterogeneidade, e o resultado desta diretriz, é mais uma mente que se emana! E se emana por que encontra a verdade, dentro das obras, livros e baluartes, não porque a arte imita a vida, mas porque a vida imita a arte!

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Ricardo Lacava

Veterinário graduado pela UNESP, mestrado pela UFSC e Doutorado pela UNESP e Harper Adams University (Reino Unido). Servidor público federal do Ministério da Agricultura. Vencedor do XIV Prêmio Literário Livraria Asabeça 2015 com a obra “O Canto do Urutau (A Lenda do Mãe-da-lua)

ricardolacava@yahoo.com.br

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As Gárgulas da

Catedral de Luz

Durante 900 anos, as gárgulas da Catedral da Luz causaram admiração e medo aos fiéis que rezavam por salvação e paz, na capital do Reino de Elborn. Ninguém sabia ao certo como aquelas esculturas tinham sido postas ali, mas era certo que não havia um só rabisco de tais monstros nas plantas originais da basílica.

Segundo as lendas e canções, o arquiteto que desenhara a maior parte do projeto, um homem esguio, de bigodes finos e poucos amigos, era dotado de diversos talentos: pintor, desenhista, escultor, músico e arquiteto. Contudo, há quem dissesse que além dessas variadas qualidades, ele também era um feiticeiro. Seu nome era Teobaldo D’Avila.

Ainda segundo as lendas, Teobaldo afirmara que só morreria após a construção da basílica. Mesmo assim, após o término do projeto, o arquiteto negou-se a morrer; afirmava que faltava algo na sua obra-prima.

“A chuva irá arruiná-la”, ele dizia. “Preciso de algo para afastar a água das paredes”.

Assim, o arquiteto colocou galerias com cerca de um metro de comprimento nas quinas das paredes da catedral. Porém, concluído o trabalho, achou-o lastimável. Algo fora do padrão de beleza que tanto havia se esforçado para dar ao maior projeto da sua vida.

A Catedral da Luz era composta por um salão de 300 metros de comprimento, duas torres de quase 100 metros de altura e repleta de desenhos góticos e arabescos finos, que levaram anos a fio para ficar prontos. O interior era todo ornamentado em prata e ouro; as janelas possuíam vitrais de mil cores.

Não satisfeito com aquela maravilha que construíra, Teobaldo D’Avila correu o país em busca de inspiração para terminá-la. Muitos anos depois, ainda sem conseguir encontrar as calhas ideais para sua basílica, tentou buscar inspiração na natureza. Foi em uma das florestas mais afastadas do reino que ele descobriu as gárgulas; a ideia surgiu como uma flecha lançada à sua mente. Ao ver aqueles humanoides pela primeira vez, com seus torsos musculosos, dentes protuberantes e asas com duas vezes o tamanho do corpo, o arquiteto decidiu que deveriam adornar as quinas da basílica.

Nada melhor que monstros alados para fazer vigília, ele pensou.

Dessa forma, Teobaldo foi até a biblioteca do castelo de Elborn e leu tudo o que conseguiu encontrar sobre gárgulas: criaturas carnívoras, que viviam em bandos e eram pouco amigáveis com seres de outras raças. Tinham o temperamento difícil, mas uma vez conquistada a confiança delas, tornavam-se leais até o fim dos seus dias.

Teobaldo decidiu que, para conquistar a confiança das gárgulas, faria oferendas de animais das próprias fazendas. Levou-lhes cabras, ovelhas, auroques e aves durante um mês, até que, por fim, convenceu-as que queria sua amizade.

Muito tempo depois, agora com permissão de entrar e sair das ruínas onde as gárgulas viviam, Teobaldo explicou ao líder das gárgulas, que se chamava Gorgon, seu plano de esculpir as formas delas nas paredes da Catedral da Luz e terminar, de uma vez por toda a sua obra-prima.

— O que você prrecisa parra fazerr iso? — Gorgon indagou, com sua voz gutural e sotaque carregado.

— Você permitiria que eu pintasse um quadro seu?

— O que é iso? — Gorgon perguntou, confuso.

O arquiteto deu-lhe uma breve explicação sobre o que era pintar e a gárgula aceitou com um sorriso tosco.

Então, mais uma vez, o nome Teobaldo D’Avila entrou para a história. Ele foi o primeiro pintor no mundo a retratar uma gárgula em um quadro.

Extremamente satisfeito, Teobaldo mandou que seus filhos levassem dez auroques e vinte cabras de uma só vez para alimentar seus novos amigos. Depois disso, ordenou que nos dias seguintes, fossem levadas cinco ovelhas, como presente pelo quadro e trancou-se no ateliê para dar início ao trabalho. No entanto, Teobaldo não era tão bom em esculpir como era em desenhar ou pintar, e, dessa forma, sua escultura ficou tão grotesca, que parecia ter sido feita por um amador. O arquiteto odiou-se por isso. A cada tentativa o trabalho só piorava.

O homem desesperou-se. Deixou o orgulho de lado e correu o mundo à procura dos melhores escultores já conhecidos. Selecionou o melhor entre os melhores e o contratou.

O escultor realizou um trabalho fidedigno aos monstros: pernas caninas e patas largas como as de um lobo gigante, asas com devidas proporções e o peito estufado como o de um orangotango, porém, a face era muito semelhante à humana. Nem reencarnados em pessoas comuns, aquelas gárgulas teriam rostos tão belos.

Teobaldo levou o homem para ver as gárgulas, mas em resposta o escultor lhe disse:

— Melhor que o meu trabalho, tu só poderás ter se petrificá-las!

No mesmo dia Teobaldo mandou o escultor embora. Voltou até as ruínas das gárgulas e se desculpou pela ausência do último ano.

— Sentimos sua falta, amígon — Gorgon disse.

— Eu também senti, estive demasiadamente ocupado. — Teobaldo fez uma pausa e perguntou — Foram bem alimentados?

— Sim. Obrrigado.

— Fico feliz em saber. — Teobaldo fitou os olhos negros do macho-alfa e falou com timidez. — Se eu pedisse para que levasse parte das gárgulas até a Catedral da Luz você faria isso por mim? Não consegui esculpir vossas formas para colocar nela... — o arquiteto começou a chorar. — Mas ficaria satisfeito se tivesse uma pintura... — Completou entre soluços.

— Non chorre, amígon. — disse Gorgon — Izto non ser nada demaiz. Noz iremoz.

— Obrigado, meu grande amigo. Serei eternamente grato e morrerei feliz.

Na manhã seguinte, as gárgulas foram até a Catedral da Luz e pousaram nas calhas conforme instruções do arquiteto. Ficaram imóveis e esticaram as asas esplendorosamente.

— Isso — Gritou Teobaldo —, fiquem assim que vou começar a pintar.

As gárgulas obedeceram e continuaram estáticas.

O rei, sua corte e todos os vassalos assistiam àquela cena. Toda a cidade estava ali.

Muitos haviam morrido sem ver a basílica ser finalizada; era, de fato, um momento histórico para o Reino de Elborn. Pelo menos aqueles poderiam ver qual era a ideia final que o arquiteto tinha para a Catedral da Luz.

Poucas pessoas olhavam para a pintura, e menos ainda conseguiam discerni-la. Parecia, aos curiosos, que o arquiteto tinha enlouquecido; sua pintura não passava de rabiscos e símbolos estranhos, feitos com uma tinta vermelha escura que mais parecia sangue. Nem mesmo os netos de Teobaldo, Guilherme e Gina D’Ávila, ao seu lado, entendiam o que o avô fazia.

Com a chegada do ocaso, o arquiteto anunciou o término do trabalho:

— Essa maravilha vai inspirar incontáveis gerações — disse Teobaldo D’Ávila, fitando a catedral, ainda sentado em frente ao quadro macabro. — Finalmente posso ir em paz! — O pincel e a paleta caíram ao chão e Teobaldo se foi.

Os netos o abraçaram, chorando. A maioria dos expectadores, contudo, nem sequer viu o que aconteceu. Olhavam fixamente para as gárgulas, esperando que voassem majestosas assim como tinham feito ao chegar.

Contudo, isso não aconteceu. As gárgulas haviam sido petrificadas.

De início a população ficou chocada com o que Teobaldo D’Avila tinha feito, todavia, com o passar dos dias, dos meses, dos anos, acabaram por se acostumar com a visão da basílica. Mas os netos do arquiteto nunca conseguiram perdoar o avô. Guilherme D’Avila II, apesar da pouca idade, jurou que não descansaria até encontrar um contrafeitiço para aquela traição. Sua irmã o aconselhou a não pensar naquela ideia; dizia que as gárgulas haviam morrido no momento em que foram transformadas em pedra. Mas Guilherme não se rendeu à vontade dela e estudou durante toda a vida para encontrar o contrafeitiço.

Infelizmente, ele morreu tentando. Mas seu esforço não tinha sido em vão. Conforme seus filhos iam nascendo, e os filhos destes, os estudos eram passados adiante, de maneira que a cada geração, os D’Avila ficavam mais poderosos.

Assim, 900 anos depois, Guilherme D’Avila X, um homem de 33 anos, gentil, então Rei de Elborn, também conhecido como Rei Mago, conseguiu desenvolver um contrafeitiço e desfez a magia do ancestral, libertando as gárgulas do aprisionamento.

Quando se viu liberto, Gorgon voou até Guilherme e perguntou-lhe:

— Onde eztá Teobaldo?

— Morreu, senhor.

— Eu sentirr muito. Erra meu amígon. Mas o que acontecerr? — Gorgon inquiriu nervoso — Por que a cidade eztá ton grrande?

O Rei Guilherme lhe contou toda a história sobre o feitiço do ancestral e a gárgula rugiu de ira.

— Eu non acrreditar. Trraidor! Trraidor! Iso non vai ficarr asim. Vou Destrruir tudo. — Gorgon soltou um berro ensurdecedor que fez o rei levar as mãos até as orelhas.

— Por favor, não! — o rei pediu sentindo as pernas bambas. Não foi culpa dos moradores. Há muitos inocentes aqui.

— Também havia nas nosas ruínaz. Perrdemoz todoz que amávamoz. Vocêz sofrerrão o mezmo. — Gorgon bateu as asas e voou levantando poeira.

O rei tentou tirar as pessoas da cidade temendo por suas vidas, mas naquela mesma noite as gárgulas atacaram. Traziam consigo pedras gigantescas e começaram por destruir a Catedral da Luz. Em seguida atearam fogo aos destroços e voltaram com mais pedras para a Praça Central. Lançaram árvores enormes sobre as casas e jogaram archotes sobre a palha do teto.

Guilherme assistia a destruição da cidade sem poder fazer nada. Ordenou que seu exército atacasse as gárgulas, desejando que estas fossem embora, mas as flechas surtiam pouco efeito. Então ele foi até a torre mais alta do castelo, rezando para que Gália estivesse lá. Se ela ainda não tivesse voltado, seria o seu fim. Mas se estivesse lá, haveria uma chance.

Chegando ao cômodo mais alto da torre, avistou Gália de cócoras sobre a janela. Ele se aproximou, mas ela continuou imóvel, fitando a destruição da cidade.

— Gália? — Guilherme chamou-a.

— Pare! — disse ela. Guilherme parou abruptamente, sem entender por que ela não olhava para ele. Então, uma voz grave e conhecida, veio de fora dos muros.

— Quem é você?

Gorgon! Guilherme afirmou para si mesmo.

Diante da pergunta, Gália esticou um par de asas miúdas e gritou para Gorgon:

— Não vou deixar que o mate. Você já teve a sua vingança. Agora vá embora!

— O que iso significa? — indagou o líder das gárgulas.

Guilherme correu até a janela e ficou ao lado de Gália. A cidade estava em chamas sob eles, mas o rei só tinha olhos para Gorgon, que segurava um archote, e outras gárgulas, atrás dele, com imensas pedras nas mãos, todas agitando as asas.

— Essa é a sua trineta — o Rei Guilherme disse, afobado —, ela chama-se Gália. Eu jurei para ela que o traria de volta. Salvei-a de lobos famintos quando ela ainda era uma criança. As gárgulas que continuaram nas ruínas migraram para as florestas do norte, mas Gália foi banida por não poder voar rápido como as demais. As asas dela são atrofiadas.

Fez-se um silêncio mórbido entre eles, enquanto a cidade ruía vinte metros abaixo. Guilherme viu lágrimas rolarem sobre a pele seca de Gorgon. Perguntou-se se ele chorava por arrependimento, por ódio da família ou por ter conhecido a trineta, mas não conseguiu concluir o motivo. Gorgon tocou as lágrimas como se não soubesse o que eram.

— Você conseguiu me prrovar que eu non stava totalmente errado em confiarr noz humanos. — disse Gorgon, entre sons guturais — Obrrigado!

Guilherme assentiu.

— Dezcupe pelo que fiz à sua cidade. Eztou dizposto a ajudar a constrruir de novo.

— Penso que é melhor não — disse Guilherme. — Depois do que fizeram, as pessoas não vão perdoá-los facilmente. É melhor irem embora.

— Eu sentirr muito.

— Mas… — Guilherme sorriu —, há algo que pode fazer por mim

— Pode falarr. Qualquer coissa.

— Leve Gália com você.

A gárgula fêmea fulminou o rei com um olhar duro.

— Isto é o certo a se fazer, Gália — Guilherme disse, num tom suave, tentando convencê-la. — Eles são sua família. Você não pode passar o resto da vida nesta torre. E eles podem lhe proteger muito melhor que eu.

Gália abraçou o rei e soluçou.

— Você sempre foi tão bom para mim — disse Gália em prantos.

— Você poderá visitar-me quando desejar. Virei a esta torre todos os dias, assim, se quiser me ver, saberá onde me encontrar.

A jovem gárgula apenas chorou.

Rei Guilherme D’Avila X trabalhou durante toda a sua vida para reconstruir a cidade. Mas sempre se mantendo feliz.

As gárgulas voltaram a adornar a Catedral da Luz, mas, dessa vez, foram talhadas em mármore.

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Nasceu em Santa Terezinha, no sertão de Pernambuco em 1988. Descobriu o universo da literatura tardiamente, aos treze anos, mas foi paixão à primeira vista. Desde então, lê e escreve todos os dias. Possui o título de Bacharel em Engenharia Mecânica pela UFCG.

Adeval de Andrade

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adevaldeandrade@gmail.com

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Carta

Meus dias correm como um rio que flui para longe do mar. O homem que passa se desmaterializa com o tempo. Pétalas de begônia sobre a mesa: a precariedade da vida.

A inquietação mora em mim. Tenho tanto a dizer e tão profunda é a vida aqui dentro que as palavras engasgam nas linhas. As memórias não são mais que uma reconstrução subjetiva? Metáfora sobre metáfora. Terra crua, palha e água. São Miguel, defendei-me.

O domingo está escrito sob a pele, onde você caminhou. O sonho é território solar. Estava morta quando você me encontrou abandonada em minha ilha pessoal.

Os dias passam. Saturno é estranho, mágico, terrível. Sob as ondas calmas, um mundo inteiro por descobrir. Um raio liga o céu à terra.

Ouço Bob Dylan cantando “Not Dark Yet” – infinitas vezes. A poesia é minha espada contra o niilismo. E você é meu labirinto.

tamara.chagas1@gmail.com

Tamara Chagas

Tamara Chagas é poetisa, artista plástica e historiadora da arte espírito-santense. Formou-se em Bacharelado em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (2008), onde também cursou Mestrado em História da Arte (2012). Publicou textos em prosa e verso nas seguintes revistas: Avessa, Raimundo, Samizdat, Bacanal, Subversa e Entreverbo. Participou da antologia do I Concurso Literário Machado de Assis, promovido pela Canal 6 Editora.

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Conversas

Há dez anos ele vem para o mesmo bar na esperança de encontrá-la de novo. Todo dia vinte e cinco do mês, lá está ele. Tinha que ser nesse dia, porque era aniversário dela. Só que ele esquecera o mês. Não importava, ele poderia esperar.

– Boa noite, Dr. Haroldo. O de sempre?

– Hoje um duplo, por favor.

Chamavam-no “doutor”, não sabia o porquê. Não era advogado, não era médico, não tinha doutorado, nem se vestia tão bem assim. Mas sempre fora conhecido por “doutor”. Verdade seja dita: ele gostava, era bom o reconhecimento – mesmo que não merecido.

Olhou ansioso para a entrada do bar, entrou uma senhora quase idosa, acompanhada de outra. Ficou desconfiado. Detestava que gente velha o abordasse, pensava que isto poderia denegrir sua imagem. Aliás! Agora sim, este é âmago da questão: sua imagem, não havia nada mais valioso. Pense só você, conheci o homem durante tanto tempo e só agora começo a compreendê-lo.

O barman trouxe a bebida. Haroldo pegou o copo com as mãos mas apenas ficou balançando o líquido amarronzado, sem levá-lo à boca. A senhora que entrou falava alto, também não gostava de gente que falava alto. Ela e amiga conversavam, sentadas numa mesa próxima ao balcão:

– Então, Cassandra, como foi sua viagem?

– Você nem acreditaria! Encontrei com o Fernando.

– Nossa! E como vai ele?

– Ah, parecia bem, não quis falar muita coisa. Mas aí encontrei com a esposa dele depois, ela me disse que ele está com depressão.

– Hum… mas isso não é nada demais, né? É só uma fase.

– Pois é, também acho.

Haroldo ouviu a conversa por alto. Depressão. Ele sabia que não era só uma fase. Enfrenta este problema há muitos anos já, tem dias que são mais fáceis. Outros nem tanto. Já tentou o suicídio duas vezes, numa delas quase conseguiu. Mas ninguém desconfiava.

Ele era o “doutor” na empresa, todos lhe tratavam com respeito. Era contador, mas trabalhava na gerência há muito tempo, o chefe não confiava em mais ninguém. Haroldo gostava do respeito, tornava-lhe mais vaidoso. Em casa, morava sozinho. Bonito apartamento, tudo novo – ele detestava coisa velha.

Em outubro de 72 ele perdeu a mãezinha. Pobre criatura. Analfabeta, casou por obrigação com um homem que entendia que ela deveria ser sua empregada e ainda lhe satisfazer os caprichos. Para a sorte (ou não) da moça, o homem não viveu muito tempo, saiu numa viagem de serviço e não voltou mais. Morreu, diz-se. Diz-se.

Hoje, com 45 anos, Haroldo pensa que foi lá que tudo começou. Era-lhe mais confortável deixar os sentimentos guardados. Satisfazia sua necessidade por mulher com o dinheiro e a de amigos com o rádio, depois com a televisão, e por fim com a internet. Muito eventualmente um livro, mas nunca terminava.

Balançou o copo, não bebeu nada. Algumas pessoas chegavam no bar, nada dela. As senhoras ao lado continuavam sua conversa. O barman ligou a televisão, jogo do Barça. “Nada demais”, pensou Haroldo. Detestava os estrangeiros, e mais ainda os brasileiros que denegriam o Brasil. Amava a pátria, mas tinha sérias dúvidas se a recíproca era verdadeira.

Talvez a pátria se sentisse traída, na verdade, porque contava com um admirador tão ferrenho, mas tinha dúvidas quanto a sua lealdade. Isto porque o homem se dizia tão patriótico, mas seu celular era de Taiwan, a camisa era importada da Itália (ele fazia questão), o jeans sabe-se lá de onde, os óculos de grife brasileiros é que não eram. Talvez a pátria também o amasse, mas não sabia se a recíproca era verdadeira.

– Mas tu não sabes que a Gertrudes foi traída?

– Mas também pudera né, a pobre se chama “Gertrudes”!

– Ô Cassandra, mas ela é gente boa.

– Pois é, mulher, mas homem não pensa assim né?

Haroldo captava trechos da conversa das duas senhoras. Fingindo-se ensimesmado, na verdade não encontrava nada dentro de si. Fugia de seus vazios internos, deslocava-se ao máximo para o exterior, temendo e tremendo com o que encontraria em seu interior quando finalmente tivesse que lidar com ele.

Porque essa hora sempre chegava.

Ele saía cedo de casa, chegava cedo na empresa. Trabalhava bem. Almoçava num restaurante próximo. De noite era que se dava ao luxo de fazer alguma coisa diferente. Não gostava de cinema, não gostava de teatro. Gostava de tomar uma de vez em quando. Mas nem sempre. Desconfiava que era uma necessidade interior de buscar contato social, só desconfiava. Foi numa dessas que conheceu ela.

Devia ter seus quase trinta anos, não tinha corpo escultural nem formosura que a destacasse. Mas aqueles olhos. Eles olharam para Haroldo e pareciam encontrar o que estava dentro. Haroldo lembra como ficou arisco, tentando ao máximo desviar-se da mirada que insistia em encontrá-lo. Como ímã, ele mesmo não conseguia evitar.

Ela entrou naquele mesmo bar e sentou-se numa mesa. Pediu apenas um copo d’água pra beber e ficava olhando pro relógio. “Esperando alguém, na certa”, pensou Haroldo naquele dia, decepcionado, mas, ao mesmo tempo, satisfeito em saber que ali não haveria futuro – um prazer misterioso que ele cultivava secretamente.

Porém ninguém chegou. Ele a olhava de canto, esperando para ver o que aconteceria. “Como era direta”, lembrou-se. Foi ela mesma quem tomou a iniciativa: após um tempo esperando, levantou-se da mesa e sentou-se ao lado de Haroldo, no bar. Haroldo nervoso, apenas fez um meneio com a cabeça.

Ele não tem a menor ideia como foi que começaram a conversar. Não lembra quem falou o quê, mal lembra do assunto. Porém recorda claramente de algo: era seu aniversário, e ela ficou de encontrar uma amiga ali para comemorarem juntas. Morava sozinha, natural de Minas Gerais, estava ali procurando emprego.

O que tinha ela de diferente, que conseguira arrancar tanta coisa dele naquele dia? Ele mesmo não sabia dizer. Talvez tivessem sido aqueles olhos. Conversaram amenidades, ele falou tanto que ficou surpreso ser capaz de tal coisa. Em determinado momento, ciente de sua tagarelice, emborcou um copo e ficou calado, envergonhado. Ela, ao contrário, o incentivava.

Mas ela foi embora. Trocaram números de telefone, mas ele perdeu o dela, deve ter caído do bolso quando tirou as chaves em algum lugar; não seria primeira vez que ele perderia coisas assim. Chateado consigo mesmo, passou os próximos dias, irritado, tomando um pouco mais do que deveria.

Foi numa dessas que tentou a primeira vez o suicídio. Olhou para um cinto, amarrou-o em volta do pescoço, mas não teve coragem. Passada a crise, resolveu que voltaria àquele mesmo bar e esperaria que ela aparecesse de novo. Mas nada.

O tempo foi passando. Ir para o bar se tornara um hábito e, desconfiava ele (só desconfiava) era o que ainda lhe mantinha preso ao fio da mente sã. A esperança de reencontrá-la e ao mesmo tempo a decepção de nunca ver isso cumprido nutria nele o sentimento misterioso de alegria em falhar.

– Cassandra, mas vamos falar sério.

– Diga.

– Tu chegou a falar com o Francisco sobre aquele assunto?

– Hum… Olha… falei…

– Que cara é essa, Cassandra?

– Vou te falar logo: ele não quer fazer negócio.

– Ah, não acredito! Mas por quê?

– Ele disse que tem outras propostas e…

“Conversas fúteis”, pensava Haroldo. Gostava dessa palavra “fúteis” e sempre que podia fazia uso dela. Pena que não tinha pra quem falar. Era sozinho mesmo. Olhou para o relógio: já iam dar onze horas. Olhou para a entrada do bar novamente, com ainda um fiozinho de esperança para romper.

Nada dela. “É, hoje não foi o dia”. Jogou uma nota de cinquenta no bar, o barman agradeceu e viu o “doutor” se levantar pesadamente do banco pequeno demais para aquele corpanzil flácido. Ele trabalhava naquele bar há um bom tempo, foi seu primeiro emprego aos dezoito anos e foi ficando. No começo não ligava muito para os clientes, gostava de ganhar dinheiro, mas depois que viu que esta não seria sua realidade, satisfazia-se em ler as histórias das pessoas em suas faces.

Foi numa dessas que viu Haroldo entrar de vez em quando no bar, pedia sempre uma cervejinha, ia ficando por ali. Lançava olhares lânguidos para a televisão, não falava com ninguém, não parecia esperar por ninguém. A princípio não ligou muito pra isso. Chamou-o “doutor” uma vez apenas por acidente e o homem gostou, dava-lhe uma gorjeta generosa. Foi deixando acontecer.

Hoje ele acha que fez mal em apiedar-se do homem, melhor teria sido mesmo se tivesse só feito seu trabalho. Mas tinha coração mole, ô diacho! Teve uma ideia: contratou uma atriz pra conversar com ele um dia, só pra ver o que aconteceria. Era uma amiga sua de faculdade, já tinham dormido juntos algumas vezes e ela estava precisando descolar uma graninha. Resolveu a questão.

Agora lavando o copo que Haroldo deixou no balcão, ele pensava que jamais poderia imaginar que dez anos depois o mesmo homem ainda estaria lá. Pensou mais de uma vez em dar-lhe o telefone mesmo da moça, só para que ele pudesse seguir em frente. Mas era cinquentinha toda vez que ele vinha…

Haroldo pegou o metrô, dentro de pouco estava em casa. Abriu a porta, acendeu a lâmpada, jogou a chave na cestinha junto com outras. O silêncio. Este era o pior. Às vezes pensava que se morasse num lugar mais “popular” talvez fosse melhor, daria pra ouvir o barulho dos vizinhos, teria com quem reclamar. Mas queria vida boa, os vizinhos eram tranquilos, cumprimentos no corredor, e só.

Talvez se tivesse alguém pra conversar as coisas tivessem sido diferentes. Ele sempre gostou de ter aquele sentimento corroendo-lhe por dentro, alimentava-se dele. Mal sabia que na verdade, neste caso, a recíproca era verdadeira. Aquele sentimento mau se alimentava dele, até que não havia mais nada para consumir.

Neste nada, Haroldo percebeu que podia fazer o que deveria ser feito. O inimigo sorrateiro venceu; na verdade, Haroldo nem sabia se estava lutando, ou se algum dia lutou, mas, no fundo, tinha certeza que mesmo que quisesse, não conseguiria lutar sozinho. Talvez se tivesse alguém para conversar.

Foi no apartamento mesmo, no silêncio.

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Músico violoncelista, compositor erudito e tenor lírico, Gabriel Alencar, 25, já tem composições tocadas no Brasil (Concertos SESC Partituras) e participantes de concursos internacionais de composição (posição 20/112 no Concurso de Composição Free-scores.com, categoria “Quarteto de Cordas”). Congratulado com o 1º lugar na categoria “Poesia” e 3º lugar na categoria “Conto” no Concurso Literário Aldenor Pimentel (2016); também em 10º lugar no III Concurso Cultural de Microcontos da Biblioteca do IFSP (Araraquara), categoria “Humor”. Gosta de aventurar-se pela ficção científica, fantasia, drama e humor.

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Espelho

Não passava das 19h quando ele pensou em se matar.

Acabara de chegar de seu trabalho chato, com pessoas horríveis e falsas. Recebeu a última atualização do divórcio. Ficou sabendo que sua mulher, ex agora, já tinha outra pessoa.

Não tinha paciência para os filhos. Prova disso, foi o último Whatsapp enviado para a filha, cancelando um convite de jantar de forma lacônica.

O apartamento parecia cada dia mais apertado. O chão sujo incomodava até mesmo o pequeno cãozinho encontrado há alguns meses que, para não precisar encostar no chão, pulava de um sofá para o outro. Bicho bobo. Insistia em brincar com a bolinha, sempre sem resposta.

Ele sentou-se na beira da cama, aquela de frente para o guarda-roupa com espelho, que sua mulher (ex, não se esqueça!) escolhera depois de horas perambulando lojas e mais lojas naquele sábado de folga. Dobrou seu corpo para baixo da cama, e apanhou a pequena caixa de metal inoxidável. Sentiu não só o peso da caixa, mas de tudo o que ela representava.

Abriu a pequena maleta, e roçou os dedos pelo cano da pistola. Nunca fora usada, continuava intacta e brilhante. A solução para todos os problemas da vida, com certeza seria sair dela. Não havia mais nada a perder.

Olhou para o espelho, e viu as olheiras chamar-lhe a atenção. O olhar fundo e cansado era um convite para terminar de fazer o que havia planejado.

– Dia difícil, hein? - Ele ouviu a voz semelhante à sua.

Levou um susto. Há alguns meses ninguém entrava na casa. Olhou pro cachorro vira-latas, que empurrava seu tornozelo com o focinho e choramingava, olhou pra frente, e viu seu reflexo falando com ele! Mal acreditava nisso, mas pensando bem, mal acreditava em muita coisa ultimamente. Resolveu testar o limite da loucura.

– Nem me fale – Respondeu de volta.

– Também vai fazer?

Ele olhou para a pistola carregada, e assentiu pesaroso.

– É o único jeito. E você? - Agora tinha certeza de que ficara louco. Respondendo o próprio reflexo!

– Ah, com certeza vou. Minha vida é uma droga.

– A minha também. Meu emprego…

– Você tem um emprego? - Questionou o reflexo.

– Bem, sim, nós temos… eu acho…

– Não, não amigo, aqui é o mundo do espelho, tudo aqui é ao contrário. Estou desempregado desde o curso de piloto.

Isso o interessou. Sempre quisera fazer o curso de piloto, mas optou por ser professor.

– Mas isso foi há…

– Sete anos. Sim. - O reflexo soltou o peso dos ombros, segurando a arma com as duas mãos.

– E sua esposa?

– Nunca fui casado. Quem iria querer um fracassado como eu? Ora, nem eu mesmo me quero neste momento. - Balançou a arma com um sorriso desanimado - Ah, filhos também não tive, naturalmente.

Ele sentia um pouco de pena do desgraçado no espelho.

– Mas algo de bom deve ter sua vida, não?

– Ora, claro! Eu sempre posso me sentar aqui pela manhã, e vê-lo enquanto se arruma para o trabalho. Me divirto também lá no espelho do banheiro, quando passa o fio dental. Você tem uma careta feia sabia? - Zombou.

Ele se divertia o assistindo? Não estava certo. Pelo menos ele tinha pessoas de verdade pra tomar uma cerveja quando ele estava menos depressivo. E seu filho o visitava a cada duas semanas.

– Bom, obrigado por compartilhar a história amigo, mas eu tenho uma coisa pra fazer – Ele engatilhou a pistola.

– Oh! Claro, me desculpe, eu também. Só estou achando um lugar legal pra fazer. Você sabe, depois que eu terminar, ninguém vai procurar pelo corpo e tudo mais.

– Ninguém? - Ele se surpreendeu – E seus pais?

– Já morreram. Acho que de desgosto. Nunca trouxe orgulho pra família, sabe?

Isso realmente o fez pensar. Os pais estavam vivos, morando em uma chácara no interior do estado, cuidando de suas galinhas, e se oferecendo pra ficar com o cachorrinho, pra ele não ficar muito só quando o filho ia para o trabalho, mas o danado do cachorro sempre chorava quando via que os velhinhos tentavam tirá-lo da casa. Queria ficar perto de seu dono.

Ele sabia que havia dado algum orgulho para os pais. Pelo menos é o que eles diziam toda vez que os visitava, e eles faziam questão de mostrar as medalhas de campeão em natação, judô, matemática, e tudo o que valha.

– Você não tem ninguém? Você precisa de um amigo – Disse para seu reflexo esfarrapado.

– Eu tenho você! Eu estou dentro de você, sabe? Todas as dúvidas, decepções e caminhos que não foram escolhidos fazem parte de mim, e de você. A diferença, é que sou a personificação do que deu errado em sua vida. Pense em mim como uma esponja. Eu absorvo todas as frustrações, para que você seja uma pessoa feliz.

Ele se sentou mais ereto na cama. Sempre fazia isso quando as palavras fugiam da cabeça. Definitivamente estava ficando louco.

– Então – continuou o reflexo –, acho que falhei em meu trabalho, certo? Mas tudo bem. Cá estamos, dispostos a terminar o que começamos. Podemos fazer isso juntos, se quiser. No três?

Ele olhou para a arma nas mãos calejadas, já pronta para ser usada.

– Um…

Sentiu o coração palpitar.

– Dois…

Suas mãos suavam, ele não havia planejado direito.

– Três…

– Espera, espera! Eu não tô pronto! Eu não posso fazer isso! Eu sei que estou numa fase ruim da vida, mas tenho filhos, e pais, uma ex esposa, e amigos, e trabalho!

– Tem certeza? Só falta um número, camarada! Vamos lá!

– Não, não posso fazer isso. Você também não devia. Ainda somos jovens e tudo mais.

– Corta essa, cara! Já tá tudo pronto, ninguém liga, lembra?

– Eu ligo! - Se surpreendeu com esta verdade. - Eu ligo sim. Vamos lá, abaixa a arma - ele implorava para o reflexo.

– Seu covarde! Então fica você nessa vida!

Enfiou o cano da arma na boca e disparou. Após o barulho ensurdecedor característico, apenas silêncio.

Ele não sabia o que fazer. Gritou e não adiantou nada, o reflexo não escutava, estava morto!

De repente, o reflexo se levantou. Bem e saudável como nunca.

– Mundo ao contrário, lembra? Eu não posso morrer se você não quiser. Além disso, aqui as balas são de verdade. As suas são festim.

– Festim? - Ainda estava atordoado. - Por quê?

– Você acha que eles te dão balas ao comprar armas? Fala sério. Liga pros seus filhos, seja um pai melhor.

Ele olhou pra arma, e rapidamente devolveu ao estojo. Sentiu nojo da ideia de que iria se matar. Colocou a pequena caixa debaixo do braço e saiu porta afora, disposto a devolver aquela coisa nojenta. Sacou o celular do bolso, já ligando pra filha, pedindo desculpas e dizendo que ia preparar o prato preferido dela, se ela topasse jantar com ele.

O quarto estava agora vazio, apenas com o cachorro rondando por baixo cama, e o reflexo ainda sentado na cama.

O cãozinho se aproximou do espelho e disse:

– E então, ele acreditou?

– No que? Na bala de festim? Claro! Ele acredita em tudo! Não viu que ia fazer besteira?

– É verdade. Estou há meses tentando brincar com ele, para convencê-lo de que era má ideia… Mas enfim, deu certo. Avisa o chefe que eu ajudei, tudo bem? Preciso de uns pontos.

– Pode deixar. Tenho mais um caso no apartamento 12… Pode fazer o papel de cachorro perdido de novo, querubim?

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Rafael Santana, 25, estudante de administração. Dono do canal do Youtube ‘Nerds ao Quadrado’, onde fala sobre livros, acha que uma vida só não é o suficiente para ler tudo o que possui. Também se arrisca a escrever, apesar de seu público se resumir à namorada.

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Rafael Santana

aoquadradonerds@gmail.com

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O Teatro de Silêncios

Ontem saímos. Foi divertido porque consigo aproveitar melhor o tempo conjunto agora que não o amo mais. Antes tinha uma euforia retardada, não conseguia pensar e não sabia como agir. Agora é natural. Saímos, bebemos, fazemos coisas lícitas e outras nem tanto… Ontem, enquanto fazíamos coisas ilícitas no carro, ele pediu que não o acordasse de manhã.

– Não consigo.

– É só ficar em silêncio.

– Mas eu sou barulhenta! Depois que acordo não durmo mais.

– Então vou te cansar para dormir o dia todo.

Realmente cansamos. Esquecemos do teatro e dormimos na mesma cama. Ainda assim, na tarde do dia seguinte eu acordei primeiro. Fiquei alguns minutos observando a pessoa que dormia ao meu lado. Exausto, pensei. Tentando não ser muito desajeitada, voltei o corpo para cima e observei o lustre quebrado.

Eu também estava exausta. Não pela noite insana, mas por ser elenco de uma peça que eu não queria encenar. Peças de teatro são atrativas, mas são de mentira. Momentos, palavras, ações… Tudo mentira. Quando fecham as cortinas, as luzes acendem e tudo muda. Não quero uma vida de mentira. Quero ser de verdade, dessas pessoas que fazem o que têm vontade e não devem satisfações.

– Há quanto tempo está acordada?

Levei um susto. Ele acordou não sei que horas e interrompeu meu devaneio sem pedir licença.

– Há quanto tempo VOCÊ está acordado?

– Tempo suficiente. No que estava pensando?

Hesitei. Voltei os olhos para o lustre e respondi:

– Quero ser de verdade.

Ele riu. Sabia do que eu estava falando, mas estávamos tão acostumados a encenar que falar a verdade era motivo de risadas. Quando viu que eu continuava analisando a lâmpada suspensa, perguntou:

– De verdade como?

Encarei-o e ele entendeu. Não precisava falar, nunca precisamos. A mente dele também era turbulenta.

– Algumas coisas não podem ser escolhidas. Outras nunca vão mudar. É a vida…

É o teatro. Pensei, mas não falei. Tantos milhões de coisas pensadas e não faladas. Outras tantas ditas sem pensar… Arrastei-me para perto dele e beijei-o no pescoço. Não bastou a noite toda. Ele correspondeu e cansamos de novo.

Eu estava quase adormecendo novamente quando, sem dizer uma palavra, ele levantou e foi ao banheiro. Eu devia ir para a minha cama. Voltar para o meu lugar que não era ali. Não com ele. Desavisado, tomava banho enquanto eu vestia meu figurino. Saiu do banheiro com uma toalha enrolada na cintura. Viu que eu estava vestida e perguntou aonde eu ia.

Embora, quis responder. Estou cansada de ter que fazer silêncio quando quero incomodar. Sinto que vou explodir, como uma panela de pressão bem cheia que chocalha. Não quero que estoure. Causaria muito estrago, muita bagunça, não estou preparada para mais isso. Não quero rasgar os figurinos, nem quebrar as máscaras de gesso. Sei que o meu telhado é de vidro. Basta um trinco e meu telhado inteiro cai na minha cabeça. É disso que estou cansada, meu bem. Fico em paz quando estamos assim, mas não quero mais participar da palhaçada que é lá fora. Não podemos ser pássaros vivendo em um ninho de cobras… Milésimos de segundo haviam passado e ele esperava uma resposta.

– Comprar cigarro.

E, sem dramas, saí fechando calmamente a porta.

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Nilmara Tomazi

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Oradoras da Morte

Jeremias encarou o copo estilhaçado. O cheiro da cerveja impregnou o local, mas seus pensamentos estavam no passado. Na contradição que aquelas Vozes malditas infligiam. No horror por tê-las invadindo sua mente, ao mesmo tempo em que sentia o pesar das vidas que não pudera salvar graças à própria descrença.

Sua mão tremia. Percebeu que fora isso que derrubara o copo. A sala de seu apartamento escurecia junto ao dia que acabava e as Vozes ganhavam força. Diziam sobre o homem que morreria em menos de 4 horas.

Tremia porque se lembrava da primeira vez. Quando sua vida foi atacada pelas malditas Vozes que não lhe deixavam pensar e viver. Dormir era um verdadeiro inferno, pois as Vozes se uniam às imagens que ele não conseguia controlar.

Era apenas tragado e paralisado por cenas que sentia serem memórias vívidas dele mesmo, mas sabia que eram passagens que nunca aconteceram, tanto da vida de Jeremias quanto na de outras pessoas. Passagens que ainda acontecerão e ele teve tanta certeza disso quanto a de que morreria em breve se continuar assim. Sobressaltou-se com o pensamento ao mesmo tempo em que as primeiras palavras retornavam à memória.

 

Ela veste ouro como seus longos cabelos e tem apenas quatro horas de vida. É azul sua morte e o sol brilha em seu reflexo. Jeremias escutara como se vindas de centenas de pessoas ao seu redor. Lembra-se de que estava sozinho na garagem do prédio em que trabalhava como zelador. Pensava que, em seus cinquenta e dois anos, tais vozes eram presságios de sua cabeça enfraquecendo.

Ouviu a frase mais duas vezes, como uma TV sintonizada de maneira brusca e no volume máximo, açoitando a mente em uma explosão sombria. Saía de seu serviço, já pensando qual médico o atenderia sem chamá-lo de maluco, quando a viu. Era Simone, do apartamento 201, e seus cabelos loiros caíam até a cintura. Jeremias estacou, sentindo garras invisíveis aprisionando suas pernas, travando seu corpo em um desespero silencioso.

O grito das crianças, a bola chutada para o meio da rua, o derrapar do Fiat azul desviando-se do garoto, ao mesmo tempo em que lançava, no último minuto, o reflexo do sol nos olhos de Jeremias. A batida e o sangue de Simone pintando o chão em filetes que pareciam ilustrar os ecos das Vozes.

Foi sua primeira morte. A segunda foi três dias depois e a terceira, quatro dias. Quatro horas de intervalo, três avisos e um morto, essa era a regra. Simone, um senhor desconhecido e, o que fez Jeremias se estilhaçar em tristeza, o pequeno Miguel que morava no mesmo prédio em que trabalhava. Tivera três chances, mas falhara por se deixar abater pelo medo.

Como explicar a insanidade que invade o destino de um homem quando tal loucura reflete a verdade de sua própria vida? Após a terceira morte ele aceitou a verdade. Famintas, Jeremias percebeu que deveria lutar contra as Vozes.

 

Dois dias após Miguel, as Vozes voltaram. Duas faces reflexas com olhos cor do céu. Da mesma cor é o abismo em que as faces submergem dentro de quatro horas, sob o canto das brancas aves.

Jeremias anotara as palavras. O coração parecia explodir dentro do peito. Deveria entender! Não deixaria os pesadelos pesarem na consciência mais uma vez.

Fechou os olhos e disse, em voz alta, as frases. A visão atingiu-lhe em uma explosão, iluminando a mente. O bosque, o lago ao redor de árvores altas. Cisnes bebendo a água cristalina da cor do céu.

As Vozes voltaram a falar em uma onda escaldante de urgência. Porém, Jeremias também podia sentir algo mais. Uma zombaria, um tom de desafio. Elas brincavam com ele, queriam-no fazer sofrer e se desesperar.

— Isso não é justo… – murmurou, pensando em sua vida solitária desde que sua esposa, Teresa, morreu ao tentar dar à luz o pequeno Vitor. Ambos mortos e juntos levaram o que restava da vida de Jeremias. — O que fiz para merecer isso?

Havia escorado a cabeça na parede e as imagens do lugar o atingiram mais uma vez. Gritou, tanto de raiva quanto de desespero e saiu do apartamento. Prometeu a si mesmo que as coisas seriam diferentes. Se era um desafio que as Vozes queriam, iria lhes dar.

Quem sabe não me livro delas?, o pensamento acendera-lhe uma chama de esperança. Suas pernas doeram com a caminhada até o lago e, por vários minutos, rondou o lugar enorme. Pensou se estaria atrasado, mas sabia que não. Sabia que sentiria a morte. Sabia que era destinado a encará-la e, mesmo que não pudesse evitá-la, ele estaria presente no momento.

O sol queimava sua nuca quando viu duas crianças. Um pequeno casal de gêmeos sorridentes. Caminhavam sobre um tronco ao redor de um descampado que caía quase três metros até o lago. As pernas de Jeremias paralisaram-se e ele percebeu que era o momento. Sua boca secara e, com imenso esforço, avançou.

Mal dera três passos, sentindo o peso do mundo afundá-lo contra o chão, um grande cisne alvo esvoaçou as asas, atiçado contra as crianças. As duas não gritaram, apenas deram-se as mãos e caíram, três metros abaixo espalhando água e afundando seus pequenos corpos.

Jeremias sentiu cordas rompendo nas pernas e costas quando fez força para avançar. Sua garganta abriu-se em um grito de fúria e, com uma vontade que até hoje não sabia como tivera, correu naquela direção.

Saltou em um ponto ao lado do barranco sob a vista de outras pessoas. Não era um exímio nadador, mas conseguira se aproximar dos dois jovens que afundavam enquanto batiam os braços em espasmos frenéticos.

Jeremias mergulhou e passou um braço em volta do corpo de cada criança. Sentiu-as abraçando seu pescoço velho e pesado. Voltava-se para a superfície quando algo enlaçou seu tornozelo. Uma raiz no fundo que o aprisionara como uma mão implacável e assassina. Contorcera-se, desesperado, mas não conseguia se livrar. Poderia jurar ter ouvido as Vozes rindo em sua mente.

Olhou para cima, e as crianças debatiam-se em busca de ar. Soltando a própria respiração, ergueu os braços jogando os pequenos para cima, empurrando-os pela cintura. Os olhos ardiam, mas ele viu quando ambas emergiram até os ombros. Podia escutar seus gritos e choros.

A fraqueza tomara-lhe o corpo e seu pé não conseguia se soltar da raiz. As lembranças se tornaram vagas nesse momento. A luz enfraquecia, mas viu a sombra de vultos, sentiu a água batendo contra seu corpo. Quando abriu os olhos, estava deitado sobre a grama e rostos sorriam sobre sua cabeça. Salvara as crianças.

As Vozes em sua mente, porém, permaneceram em silêncio por apenas mais três dias.

 

Encorajado pelo primeiro salvamento, conseguira mais três. Duas moças no intervalo de sete dias e o senhor que lhe custou caro. Suas costas doeram por quatro dias seguidos quando teve de saltar sobre a primeira, salvando-a de tijolos que a atingiriam ao caírem de um prédio em construção.

A Vozes riram quando ele se jogou e caiu sob o corpo dela, estalando suas costas velhas e batendo a própria cabeça. Os tijolos quebraram atrás de si. Estilhaços voaram sobre os dois, mas a moça permaneceu viva com poucos arranhões. Ela apenas o encarara, com um olhar abobado e chorou.

Jeremias permitiu-se um afago nas costas dela e se levantou, não dando tempo para agradecimentos. Pessoas aproximaram-se para acudi-la. As Vozes emitiam uma vibração de raiva que fez Jeremias sorrir por dentro.

Uma semana depois, outra moça. O púrpuro reveste sua mente. Era a frase para a jovem de curtos cabelos roxos. Uma rua afastada do centro e a noite acabara de cair na cidade. Jeremias viu o um opulento predador de olhos brilhantes na calçada oposta. O sujeito iria embora se a moça não tivesse tossido. Ele ouviu e encarou-a como o predador ávido que fazia parte de sua natureza doentia. Jeremias, escondido atrás de árvores e na escuridão, viu-o sorrir de um modo feroz e atravessar a rua.

A moça estava prestes a virar a esquina quando as mãos do homem a agarraram pelo pescoço e tamparam sua boca. Jeremias apenas encostara uma faca da própria cozinha no pescoço do cretino.

— Solte-a ou seu sangue vai sujar a rua — disse, sem saber de onde tirara coragem. O sujeito largou a moça. A garota correu, gritando. Jeremias chegou a sorrir ao se lembrar do aperto que passou quando os policiais o viram com a face na nuca do homem. Horas de depoimentos e conseguira se safar com um tapinha nas costas e um agradecimento da jovem.

As Vozes não riram. Exausto, mal havia chegado em casa, elas retornaram.

 

Sua face sob um véu prateado frente ao neon que recita o céu. É o próprio ar que o abandona ao odor da morte em quatro horas. Jeremias sentou-se no sofá e tomou um longo gole de água. Era quase meia-noite, ou seja, a morte ocorreria por volta das quatro horas. Fechara os olhos. Por um momento, apenas sombras, mas percebera que era o lugar em que ocorreria a morte que escurecia. Um quarto escuro, um vulto na cama. A janela de cortinas abertas deixava entrar uma luz vermelha e roxa que piscava. Abriu os olhos quando compreendeu.

Seus olhos ardiam enquanto buscava o motel no catálogo de telefone, tendo de segurar um grito ao ver que eram três com o mesmo nome. Não conseguia distinguir qual seria. O cansaço lhe abatia e pensou se deveria desistir. Era um senhor de idade que vira na cama, talvez já fosse seu momento.

Ouviu as Vozes rindo em sua mente. Era o que queriam. A derrota de Jeremias.

— Não vou perder minha paz por vocês! — exclamara para as paredes vazias. — Vou enfrentar o mundo, mas vou vencê-las! Não apenas as minhas feridas, mas as vidas dessas pessoas que salvarei serão prova viva disso!

As Vozes calaram-se, mas Jeremias sentia o ar de zombaria. Nisso, já passava de uma da manhã. Não tinha veículo próprio e não conseguiria caminhar por toda a cidade a tempo. Anotara os nomes e chamou um táxi que o deixara na esquina abaixo do primeiro motel. Analisando o lugar, demorou alguns minutos para perceber que não era ali. Teve de chamar outro táxi. Olhou o relógio e se assustou ao perceber que eram três horas. Fechou os olhos, ouvindo as Vozes e pensando qual motel deveria ir. Escolheu o mais longe.

Era o certo. Logo que desceu do carro, viu a pequena casa cuja janela era iluminada pelo letreiro com a palavra Nuvem do motel à frente. A adrenalina subjugou o cansaço e o fez correr até a porta. Bateu nela e tocou a campainha. Doze minutos para as quatro. Nenhuma luz acesa. Jogou-se contra a porta várias vezes, sentindo ombro estalar e corpo dolorido. Quatro minutos para o final e a porta cedeu. Ofegante, mal entrou e sentiu o cheiro do vazamento de gás. Sufocava-o. Ouviu uma tosse rouca em um quarto no andar superior.

 

Olhando a cerveja manchando o chão de seu apartamento, não conseguia se recordar de como retirara aquele velho da casa. Sem fôlego, sem forças. Lembra-se de gritar com o senhor nos ombros, carregando-o para a rua. Gritava por ajuda e para abafar o som das Vozes. Elas riam e gritavam para que desistisse, não valia aquele esforço. Os vizinhos o ajudaram quando saiu pela porta. Sirenes de ambulância.

Jeremias não visitara Marcelo, o senhor de setenta anos que sobrevivera ao envenenamento de gás de cozinha. No dia seguinte, ligou no hospital e soube que estava bem. Recuperara-se e seus filhos cuidavam dele. Jeremias nunca havia chorado tanto em sua vida.

Agora, três dias depois, as Vozes sussurravam com malícia. Jeremias não mais se importava, sabia que elas continuariam assim até matá-lo.

Como a bocarra da fera, as chamas devorarão o homem de carmesim em uma hora. Os espelhos do céu que estão sobre ele não o salvarão do fim de sua missão. Era a terceira e última repetição.

Jeremias compreendera apenas um pouco, mas era suficiente. Levantou-se, saindo do apartamento. Fazia frio com o cair da noite e, por isso, colocou uma jaqueta por sobre a blusa vermelha. Precisou andar oito quadras para a loja de roupas cujo teto era de um vidro azul. Sentiu o cheiro de fumaça no local.

Sentiu a morte rondando e as Vozes agitando-se, zombeteiras. Ombros doloridos, peito ardendo desde o gás de cozinha, pernas endurecidas. Sua vontade era tudo que o guiava rumo ao fogo e aos gritos. Era sua tarefa.

As Vozes ficaram furiosas, pois ele venceu. Conseguira salvar as duas pessoas que estavam aprisionadas na loja. Cumpriu a última missão. Enfim, calara aquelas que foram oradoras da morte.

Jeremias tornou-se, enquanto se entregava às chamas, o eco perdido de um herói que enfrentara seu próprio destino.

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26 anos, é pós-graduado em Direito e licenciado em História, nasceu em Uberaba, MG. Tem predileção por literatura fantástica, épica e de terror. Possui contos e poesias publicados pela Editora Darda, editora Casa e Cultura, editora Illuminare e fim do ano publicará seu livro de fantasia “Phronus – A Canção da Ruína dos Mundos” pela editora Autografia. Expõe suas obras na página “Ecos Literários do Fim do Mundo” no facebook

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Lucas Nangi

lucas.nangi@hotmail.com

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Os Praças Vão à Guerra

Éramos apenas mais um dos “saco B” do Regimento Sampaio. Desde nossa chegada a Europa em 16 de Julho de 1944, nós não atuamos no front uma única vez. Fazíamos tanta falta que acabamos sendo emprestado a uma divisão do V Exército norte-americano, comandada pelo major Henkins. No início trabalhamos como Batalhão de Sepultamento, trabalho monótono, mas perigoso por causa das “armadilhas de bobos”.

O marechal Albert Kesselring estava dando uma canseira nos aliados. Ele havia combatido em todo o reich. Com os nazistas e os remanescentes das tropas fascistas, ele criou uma das melhores defesas territoriais em guerras. Montando grupos de artilharia nas diversas cadeias de montanhas italianas, ele conseguiu impedir a escalada dos aliados pelo Ventre Liso da Europa.

Com o domínio do terreno elevado, suas várias linhas de defesa na bota custaram a ser quebradas, se tornando um forte ponto de defesa. A Alemanha já havia sofrido uma terrível baixa com a Afrikakorps no norte-africano, sob o comando da Raposa do Deserto, ou Erwin Rommel.

Nossa divisão estava passando por alguns apertos. Acabamos ilhados, nosso avião reportou uma mensagem de que a ponte que atravessaríamos foi destruída. Para completar, o P-47D Thunderbolt foi derrubado no segundo voo de reconhecimento. Não tínhamos uma ponte modular Bayle ou um veículo blindado M-8 Grayhound para fazer o reconhecimento, como os usados pelo Esquadrão de Reconhecimento da FEB.

Precisávamos avançar para Bolonha. Mas antes disso, tínhamos que passar por uma vila chamada San Viccienzo. Partigiannis haviam pedido reforços na vila, provavelmente eles já estavam mortos. O major Henkins não queria repetir o erro inglês da Batalha do Somme na 1° Guerra Mundial. Então pediu um grupo de cinco homens para fazer uma missão de reconhecimento, e mostrar um caminho seguro pelo rio.

Nessa hora as palavras do meu pai ecoaram nos meus ouvidos: “O caráter de um homem é medido pelos seus feitos”. Então levantei a mão. Fui aplaudido pelos demais.

— Muito bem sargento Matarazzo, mas precisamos de mais quatro homens.

Por um momento ninguém se pronunciou. O major olhava de um canto a outro para as caras tristes, marcadas pela dor e o medo. O Sol já estava prestes a se por, isso trazia mais perigos a missão. Então outro brasileiro se levantou.

— Se esse cabra vai, eu vou.

Pipoqueiro mostrava coragem como sempre, um cearense que antes da guerra vendia pipoca na porta de uma escola. Depois dele Feitiço, o nosso carioca seresteiro e Galego, que muitos chamavam de alemãozinho levantaram a mão. Ninguém mais levantou, o silêncio reinava. Até que uma voz rouca saiu do meio da multidão de soldados.

— Isso vai ser paúra, mas vou sentir uma falta se esses caboclos morrerem.

A voz penalizada era de Vaqueiro, chamado assim por que trabalhava como boiadeiro numa fazenda de gado em Mina Gerais. Major Henkins agora tinha o seu Esquadrão de Reconhecimento. Partimos antes de o céu ser tomado pela escuridão. A missão era perigosa, mas quando se está no território inimigo, você só deixa de correr risco indo embora ou morrendo. A segunda opção me parecia mais razoável.

Embora fosse o líder, deixei a experiência de Vaqueiro falar mais alto. Ele descobriu a parte mais rasa do rio numa distância segura da ponte, atravessamos naquele ponto. Subimos uma colina, segura depois de sabermos que os nazistas estavam encastelados em construção de San Viccienzo. Aproveitamos a noite para dormir, amanha começaríamos a trabalhar. Fiz o primeiro turno de guarda.

Após Galego tomar meu lugar, dormir profundamente, nem mesmo um morteiro alemão me acordaria. Só despertei do sono graças às mãos que agarraram a minha boca. Era Pipoqueiro. Gesticulou para que eu o seguisse em silêncio. Havia o som de vozes alteradas, outra que sorria. Num pequeno morrote, começamos a nos rastejar, os outros estavam lá e ficamos observando de cima do lugar.

Abaixo um grande descampado estava cheio de covas. Havia um caminhão ao fundo, um SS e outro Wehrmacht vigiavam um velho que cavava uma cova. O SS gritava em seu ouvido com uma pistola apontada para ele. O velho chorava. O soldado alemão ria.

— Estão colocando minas — disse Feitiço.

— Não. — O sofrimento daquele homem grisalho lembrou o meu pai. — Está cavando a própria cova.

— Sargento Matarazzo, permissão para encher aqueles animais de chumbo?

— Acalme-se Vaqueiro, venha comigo Galego, vocês peguem aquele ali de baioneta.

Retiramos os nossos capacetes e descemos o morrote de frente para os nazistas. Nossos companheiros tomaram posição atrás do caminhão. Galego vinha do Rio Grande do Sul e era descendente de alemães. Alistara-se na FEB por que o pai o obrigara a proteger a “Terra Mãe” de Hitler. Eu tinha nascido de uma mulata e de um italiano que fugira em 1929 após Benito Mussolini, chegar ao poder na Itália, tinha escolhido estar lá.

Como nossos uniformes tinham a mesma cor e corte, deu para enganar aqueles dois.

— Heil Hitler! — Galego fazia a saudação nazista.

— Kamerad — gritava acenando.

Por um momento eles ficaram sem entender e até o SS me cumprimentou. Mas depois do soldado nazista ter caído no chão gorgolejando sangue, o SS tentou atirar em nós, mas foi derrubado pelo velhote com um golpe de pá. Aproveitei e dei um tiro com meu fuzil Springfiled. Um tiro não despertaria atenção, os outros deveriam estar esperando a morte do italiano. Depois disso, eu interroguei o velho e serve de tradutor.

— Onde os nazistas estão? — O velho pediu água, Feitiço deu o seu cantil.

— Numa antiga fortaleza do império romano. Levaram a minha neta... — As lágrimas desceram do rosto. — Eles mataram muita gente, mataram todos os homens.

Descrevi a situação tão comum aos meus companheiros. Feitiço e Vaqueiro subiram no fundo do caminhão, provavelmente buscando alguma coisa de valor.

— E os Patigianni?

— Eu fui o último, eu liderava o grupo. Fizeram-me cavar todas as covas dos meus companheiros. Eu os vi morrerem na minha frente, sem que eu pudesse fazer nada.

— Não foi culpa sua. Você quer nos ajudar a retomar a sua vila?

— Sim, farei tudo possível. — Apontou em direção à vila. — Toda vez que os aliados atacavam, eles matavam os homens, depois levavam as mulheres. Deixavam apenas os velhos e as crianças.

— O que ele falou? — perguntou Pipoqueiro.

Senta pua!

— Sargento Matarazzo, vem cá ver o que eu achei!

Fomos todos para o fundo do caminhão. No fundo do caminhão estavam uma bazuca e uma MG-42.

— É hoje que Lurdinha vai costurar mortalha de alemão.

O sotaque forte de vaqueiro me fez rir. Perguntei ao velho como era a movimentação na fortaleza. Ele disse que guardas vigiavam o tempo todo de cima dos muros. Lá dentro ele não sabia informar, mas provavelmente já não tinha muitos nazi, a maioria tinha debandado e o remanescente só conseguia sobreviver graças às provisões que tinham roubado da população. Imaginei que eles estavam ocupados demais com as mulheres.

Só o nosso uniforme não ia funcionar. Eu e Galego vestimos as roupas dos nazistas e colocamos os defuntos na cova aberta. Pede ao senhor que desse algumas palavras. Ele se esforçou e rosnou entre os dentes:

Maledetto Tedeschi! A cerimônia estava oficializada.

Coloquei o partigianni junto com os outros três na traseira do caminhão e seguimos para a vila. Galego dirigia, enquanto eu estava de carona. Continuamos até entrar na vila. O sangue se misturava a lama da chuva. O lixo fedia tanto quanto os cadáveres de homens crucificado nos postes. Muitos tinham mutilações pelo corpo, indicando o quanto de crueldade nosso inimigo era capaz de fazer.

Ao passar pelas ruas, as crianças nos olhavam curiosas. Os idosos os colocavam para dentro, fechavam as portas e janelas. Chegamos até a fortaleza. Fizemos a saudação nazista. Os guardas do muro responderam com entusiasmo. Entramos pelo portão e depois que eles foram baixados, contei os guardas pelo retrovisor.

— Seis nazistas estão lá em cima Pipoqueiro, tem mais dois operando o portão.

Paramos o caminhão bem na entrada da fortaleza. Então dei o sinal. A traseira do caminhão foi aberta e um tiro de bazuca derrubou parte do muro com dois nazistas. Os que operavam o portão foram alvejados por mim e Galego. Os outros cerraram fogo contra nós. Um deles jogou uma granada na capota do caminhão. Todos saíram correndo do veículo. Após a detonação, só sobrou uma pilha de chamas e ferro retorcidos.

Perdi a visão dos franco-atiradores. Meus ouvidos zuniam. O velho pegou a arma de um soldado morto e me tirou da linha de tiro. Recobrei-me após nos escondermos nas laterais da fortaleza. Isso nos deixou com um ponto cego, mas não tínhamos mais como recuar. Pela conta que eu tinha feito, restavam mais quatro atiradores. Um novo tiro de bazuca derrubou mais um do muro.

Aproveitei a deixa e derrubei um com o fuzil. Os outros três caíram pela submetralhadora Thompson que chamávamos carinhosamente de “engraxadeira” de Galego e a carabina leve M1930 de Pipoqueiro.

Para nossa sorte, a explosão havia destruído a porta. Tínhamos passe livre. Só entramos depois de checar se os nazi estavam mesmo mortos. Achei estranho não terem surgido mais alemães. Dentro reparamos que havia um grande salão. O partigianni explicou que a velha fortaleza de pedra tinha sido usada há muito tempo por cavaleiros templários, isso explicava as cruzes. Agora a suástica enchia o local.

Havia pelos menos mais três andares acima. Quando subíamos pela escada, o velho me agarrou pela manga do uniforme.

— O que está fazendo?

— Procurando os Tedescos.

— Eles não estão lá em cima.

— Como você sabe? — perguntei curioso.

Aquele lugar não era apenas um patrimônio qualquer no meio de uma vila rural. Tratava-se de um dos maiores sítios arqueológicos da Itália. Antes de o velho empunhar armas, ele trabalhava como um protetor das artes e planejava com ajuda do governo e do Vaticano, transformar a velha fortaleza num museu. Entretanto, as estruturas do prédio já mostravam que ele não veria o ano novo de 1945.

Guiou-nos até uma passagem muito bem escondida atrás da estátua de um anjo que empunhava uma espada. Disse que a estátua representava São Miguel. Um nazista bastante inspirado colocou a bandeira do reich como uma capa. Atravessamos a passagem claustrofóbica e chegamos a uma série de galerias labirínticas. Ouvimos gritinhos e risadas. Os nazistas acreditavam que os seus Kamerad tinham derrubado mais um avião.

O italiano disse que as mulheres estavam confinadas lá dentro. Montamos uma formação de ataque. Feitiço e eu derrubamos a porta. Não precisamos disparar um tiro se quer. Cerca de vinte nazistas estupravam as mulheres. A maioria era adolescente. Algumas estavam no chão em cima de poças coaguladas de sangue. Por um momento minha roupa deu a ilusão de que éramos nazistas. Então dei um tiro para cima.

— A festa acabou Tedescos.

Eles começaram a gritar Kamerad! E pôr as mãos para cima. Um deles tentou atirar em mim, mas o partigianni acabou com a raça dele. Um das moças ao ver o velhote correu para abraçá-lo. Os dois não se largaram até que todos os alemães fossem retirados da sala por nós. Todos estavam nus. A garota era neta do partigianni. As mulheres custaram a sair. Depois de explicada a situação, elas foram removidas e vestiram roupas.

Tínhamos a intenção de fazer os desnudos soldados nazistas prisioneiros de guerras. Os populares os trouxeram para o meio da praça. Todos gritavam, colocavam as mãos para cima, mas a população não ouviu os seus clamores. Colocaram os nazistas ajoelhados. Pegaram tudo que pudesse matar e usaram contra os alemães. Rumaram pedras, os que tentavam fugir eram fuzilados. Nenhum deles sobreviveu. Não ajudamos, mas também não impedimos.

Ao longe víamos a nossa divisão chegando. Tínhamos o prazo de ao meio já estar na base. Significava que os módulos da ponte Bayle tinham finalmente chegado. No relatório foi difícil explicar o porquê não protegemos os prisioneiros. O major disse que os nazi podiam nos dar informações. Depois ele ascendeu o cigarro e nos dispensou, no relatório final estava escrito: “Divisão da FEB salva San Viccienzo em ato heroico”.

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Nasceu na cidade de Araçás,Bahia. Desde muito jovem, se interessou pela cultura pop. No Ensino Fundamental, publicou um livro de poesia. Desde então, publica em diversos gêneros, tanto e-books quanto impressos. Reside na zona rural de Alagoinhas, cidade próxima a Araçás.

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Caliel Alves

www.facebook.com/Caliel-Alves

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Tarde de Trabalho

Atípica

Araújo, parado na calçada oposta, observou o prédio. Era o que costumavam chamar de conjunto habitacional. Devia haver uns 20 apartamentos em cada andar. Roupas e tapetes estendidos nas janelas ajudavam a piorar a fachada coberta de pichações e infiltrações. Resmungando baixo atravessou a rua, tendo o cuidado de esperar uma moto com três pessoas equilibradas passar a toda velocidade.

Antes de entrar, lançou um olhar para seu carro. Era verde e tinha o nome e o logotipo de sua empresa, Cosméticos Naturais Borboletas, nas portas e no capô. Mesmo assim, julgando pela vizinhança, considerou que nem isso afastaria um provável ladrão de carros.

Caminhou pelo saguão precariamente iluminado. Apesar da luz do dia, lá dentro a sujeira e as lâmpadas fluorescentes queimadas colaboravam para que a escuridão reinasse. Caminhou até o porteiro, um jovem atarracado que lia o jornal.

– Boa tarde. Gostaria de falar com o senhor Hildebrando. Apartamento 818. Meu nome é…

O porteiro não levantou os olhos do jornal.

– Elevador no final do corredor – disse com clara má vontade.

Araújo agradeceu, apesar da vontade de arrancar o jornal das mãos do homem, e seguiu na direção indicada. Hoje em dia ninguém dava valor ao seu trabalho.

Estava de mau humor. Sentia vontade de esganar alguém, literalmente. Mas não qualquer um. O alvo de sua raiva era bem definido: Góis.

Apertou o botão do elevador, que chegou ao térreo se arrastando. A porta pantográfica rangeu preocupantemente quando se abriu. Apertou o botão redondo com o número 8. Reparou que alguém havia colado chiclete no número 7. Ele não devia estar ali. Devia estar no escritório recebendo os relatórios de vendas por torpedo e agendando novas visitas.

Enquanto o elevador subia irritantemente devagar, voltou a ruminar seu ódio. Góis! O talzinho tinha menos de três meses na firma. Mesmo assim conseguia vendas espetaculares e caíra nas graças dos chefes. Só que Araújo nunca se enganou com ele. Como supervisor via além do que seus vendedores exibiam em seus rostos sorridentes. Via nos olhos do cretino a esperteza de um trapaceiro diplomado, só esperando para passar uma rasteira em algum colega ou na própria empresa. Além das outras coisas. O cabelo pintado de louro quase branco; a mania irritante de mascar chicletes mesmo durante as vendas; os flertes inadequados com a clientela feminina; as mangas da camisa social arregaçadas para mostrar a tatuagem, uma frase em latim: Audaces fortuna juvat. A sorte favorece os corajosos. Podia substituir o ‘corajosos’ por ‘oportunistas irresponsáveis’.

Duas semanas atrás ele saíra para fazer três visitas: uma no centro da cidade, uma na zona sul e outra no subúrbio. Depois disso, sumira. O mais estranho de tudo: os cheques das vendas do dia chegaram à firma pelo correio. O endereço do remetente era o de um terreno abandonado.

O elevador parou com um tranco no oitavo andar e 10 centímetros abaixo do nível da porta. Araújo pulou para fora e fez uma nota mental: descer de escadas.

Seguiu pela esquerda, obedecendo à placa que dizia “do 810 ao 820”. O corredor combinava com o prédio de maneira magnífica. Escuro, sujo e fedorento. Passou por uma porta aberta, do 810, e viu alguns homens sem camisa jogando cartas em uma mesa baixa. Ouviu o choro de um bebê ao passar pelo 812. Um homem e uma mulher discutiam aos gritos e ao som de copos se quebrando no 815. Tocou a campainha do apartamento 818.

Esperou alguns segundos. Sentiu um barulho às suas costas e reparou que o morador do apartamento em frente, o 817, abrira uma fresta na porta e o espiava. Não conseguiu descobrir se era homem ou mulher por causa da escuridão lá dentro. Tocou novamente.

A porta do 818 se abriu, fazendo com que Araújo desse um salto.

Um homem gorducho e baixo o olhava. Usava óculos de aros redondos e tinha uma barba branca. O cérebro de Araújo pensou incoerentemente que ele daria um excelente Papai Noel.

– Bom dia, em que posso ajudá-lo?

Araújo olhou para trás ao ouvir a porta do 817 se fechar com um baque.

– Boa tarde. Meu nome é Araújo e trabalho na Cosméticos Naturais Borboletas. Queria falar com o senhor Hildebrando. Estou procurando informações sobre um dos nossos empregados que…

Uma porta no corredor foi aberta e um homem saiu correndo do apartamento. Uma mulher de camisola saiu atrás dele, segurando uma garrafa quebrada em uma das mãos.

– Volta aqui, covarde! Volta pra eu te matar!

Alguns moradores saíram dos seus apartamentos para ver a cena. Alguns riam.

– É melhor entrarmos, meu filho. Aí fora não é seguro.

Araújo nem pestanejou. Notou que alguns moradores o encaravam e arrependeu-se de estar usando uma gravata.

O homem de barba fechou e passou duas trancas na porta. Olhou para Araújo e disse, como se pedisse desculpas:

– Vizinhança difícil. Já foi melhor… Vamos para a sala. Na minha idade ficar muito tempo de pé não é bom. A propósito, eu sou Hildebrando – apertou a mão de Araújo.

Seguiram por uma cozinha impecavelmente arrumada e chegaram a uma sala que destoava completamente do resto do prédio. As paredes brancas combinavam com a limpeza dos móveis e da sala. Araújo não pode conter uma exclamação de admiração. Hildebrando sorriu satisfeito. Indicou um sofá enquanto se sentava com um gemido reumático em uma poltrona.

– Não costumo receber muitas visitas. O prédio não ajuda. Mas tento manter a casa em ordem. O senhor quer beber algo?

– Não, obrigado. O senhor mora aqui sozinho? – Araújo ainda estava impactado pelo contraste. Parecia que tinha dormido e acordado em outro lugar.

– Desde que meu cachorro morreu. Faísca… Um bom cachorro. Mas enfim, o senhor disse algo sobre procurar alguém…

– Sim, verdade. – Araújo tirou um caderninho do bolso da camisa, só pra tentar mostrar mais profissionalismo. O ódio gravou em fogo todos os detalhes e informações daquela situação em sua mente. – Estou procurando um de nossos vendedores. O nome dele é Góis. Duas semanas atrás ele sumiu depois de sair para fazer algumas visitas. Além da casa do senhor, outras duas visitas estavam agendadas para aquele dia. Estou visitando os endereços pra saber se descubro algo. Já visitei os dois outros clientes. O senhor é o último.

– Esse dia foi na quinta-feira? Dia 15?

– Foi sim. O senhor se lembra dele?

– Lembro sim… Ele chegou aqui umas 16h… Tinha acabado de terminar a novela – riu encabulado – Vocês tinham me ligado na segunda-feira para saber se eu poderia receber a visita. Marcaram para quarta, mas eu só podia na quinta… Tinha médico marcado. Acho que foi por isso que o Silas não veio… Geralmente ele é o vendedor que me visita.

– Sim, geralmente o contato é feito dois dias antes. Nossas concorrentes costumam ligar no dia da visita, o que nós consideramos falta de respeito…

– Concordo. As pessoas estão perdendo as boas maneiras. Diga-me… Esqueci seu nome.

– É Araújo.

– Esse vendedor que veio aqui… Ele já estava com vocês há muito tempo? Pergunto isso porque hoje em dia existem muitas pessoas que vivem de aplicar golpes… Vocês acham que ele fugiu com o dinheiro das vendas ou que algo grave aconteceu?

– Bom… Ele era um bom vendedor apesar de estar a pouco tempo conosco… E realmente ele conseguiu fechar todas as vendas daquele dia. Meu chefe acha que algo aconteceu. E também a garota que ele namorava. Ela aparece na firma todo dia querendo saber se ele apareceu. Já acionaram a polícia, percorreram os hospitais e o I.M.L. e nada. Nem eu sei o que pensar…

Hildebrando pareceu notar a hesitação de Araújo. Olhou-o com simpatia.

– Eu realmente comprei várias coisas do seu vendedor. Gosto do xampu para barba e do Bálsamo para pernas cansadas. Sou cliente de vocês desde sempre… Por isso me senti mal agora… Estou usando um produto que não foi pago. Estou certo?

– Não vim aqui para cobrar o senhor, Sr. Hildebrando. É só porque eu preciso dar uma resposta pro meu chefe. Não sei exatamente que resposta, mas ele quer um relatório sobre minhas visitas, os horários em que eu estive aqui e o que descobri… Sinceramente, acho tudo perder tempo... Mas sou o supervisor dos vendedores e uma ordem é uma ordem. Além disso, recebemos os cheques pelo correio… O endereço do envio era falso, mas os produtos estão pagos.

– Trabalhar com vendas sempre me pareceu fascinante… E desgastante. Já tive muitos empregos, mas nunca fui vendedor. Me aposentei quando trabalhava na ferrovia. Mas comecei em um curtume… Trabalhei em uma farmácia… Depois fui alfaiate… Li em algum lugar que é uma profissão fadada ao desaparecimento – deu uma risada – estou divagando… Coisas da idade. Venha comigo até o meu escritório. Vou preparar um cheque. Mas não pelos produtos que já foram pagos, mas pelo fato do senhor ter vindo a esse pardieiro pelo bem do seu trabalho. Duvido que receba adicional de periculosidade.

– Senhor Hildebrando, isso não tem cabimento… Não posso aceitar dinheiro do senhor sem motivo… – mas Hildebrando já se levantara.

Araújo o acompanhou protestando. O velho apenas ria, divertido.

O escritório era outro deleite para os olhos. O papel de parede imitando madeira de jatobá dava um ar acolhedor. Vários livros com lombadas estrangeiras povoavam as prateleiras. Hildebrando sentou-se em uma grande mesa de madeira de lei e tirou um talão de cheques da gaveta.

Araújo admirava os itens no escritório. Foi quando notou uma porta parcialmente oculta por uma tapeçaria. Hildebrando notou seu olhar:

– É a porta do outro apartamento. Com a indenização que recebi quando me aposentei como ferroviário pude comprar o apartamento aí do lado que estava vazio. Precisava de espaço… Um pedreiro daqui mesmo fez o serviço pra mim. Homens solitários precisam de hobbies… Guardo meu material de costura e outras coisas aí do lado.

– O senhor costura roupas?

– Roupas, capas de sofá, chinelos… Também faço remendos em roupas pra ajudar alguns vizinhos mais necessitados. E gosto de criar. Está vendo aquilo? – indicou um abajur de chão quase do seu tamanho perto de uma poltrona de leitura – Eu fiz a cúpula. Pele de carneiro.

Araújo olhava fascinado. A cor era maravilhosa. Tocou a peça, apreciando a textura.

– Perdoe-me… Esqueci meus óculos no quarto. Já volto.

Enquanto Hildebrando saía, Araújo parou em frente a um armário com portas de vidro. Lá dentro algumas miniaturas e itens feitos com o que parecia ser pele de animais dividiam espaço. Um par de luvas, uma carteira e o que parecia ser um estojo de óculos.

Hildebrando voltou para o escritório.

– Desculpe, não acho meus óculos… O estojo sumiu… Odeio quando isso acontece…

– Não são esses aqui? – perguntou Araújo, abrindo o armário e pegando o estojo. Fechou a porta distraidamente enquanto girava o objeto nas mãos, maravilhado. - Essa textura é diferente… Tem uma cor muito bonita… Pele de cabra?

– Não exatamente. – a voz soou fria dessa vez.

Araújo parou. Olhava o estojo tentando processar o que via. Finalmente notou a mão de Hildebrando estendida, esperando o estojo. Araújo o entregou para Hildebrando.

Colocando os óculos, Hildebrando preencheu o cheque. Entregou-o ao Araújo.

– Espero que isso cubra os problemas causados. Não me entenda mal, mas notei que é bem diferente dele – pegou Araújo pelo braço gentilmente e o conduziu pelo apartamento – Percebi que o senhor é honesto… Dedicado à firma… Podia facilmente ter aceitado meu cheque sem mencionar que o valor já tinha sido restituído. Seu funcionário tentou me roubar… Eu o deixei alguns segundos no escritório e o vi revirando uma das minhas gavetas… Na certa procurando dinheiro para furtar. A juventude de hoje não tem respeito por mais nada… O senhor entende.

Pararam em frente à porta do apartamento.

– Estejam à vontade para marcar mais visitas… Pode ser o Silas, por exemplo… Mas evitem me mandar trapaceiros. Não gosto desse tipo de gente na minha casa… Sou apenas um homem velho indefeso que mora sozinho.

Abriu a porta, apertou a mão de Araújo, que caminhou como um zumbi para o elevador, esquecendo sua própria nota mental.

Já dentro do carro, deu a partida no motor e ficou com as mãos no colo, ainda segurando o cheque, encarando o para-brisa e pensando em Góis, em sua desonestidade e no que devia ter encontrado.

O estojo definitivamente não era feito de pele de cabra. Cabras não possuem tatuagens em latim.

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hedjancs@gmail.com

Hedjan C. S.

Nascido em 1978 no Rio de Janeiro. Formado em Pedagogia. Publicou o conto “Sobre Trailers e Maldições” na antologia Tratado Oculto do Horror (Andross, 2016). Mantém o blog materiadepesadelos.blogspot.com.br. Suas influências literárias são Nelson Rodrigues, Stephen King e H.P. Lovecraft.

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