Opinião

A Mentira Literária

O que lhe define?

A pergunta é muito profunda? Perdão, vou tornar a questão um pouco mais fácil: qual é o seu nome?

Melhor, não?

Pergunto isso porque, no mundo literário, não é raro que o nome de um autor seja mais importante do que a sua obra. As pessoas não leem Notas do Subsolo, elas leem Dostoiévski. As pessoas não leem Esaú e Jacó, elas leem Machado de Assis. As pessoas não leem O Barril de Amontillado, elas leem Poe.

A Literatura é, sem dúvida alguma, uma forma de estabelecer cultos à personalidade. Mas não há problema algum nisso, contanto que os trabalhos sejam bons, alguém me diz. E eu respondo que essa é a maior pedra que já se interpôs no caminho da arte literária. Explicarei o porquê.

Primeiramente, devemos levar em consideração que a “literatura” divide-se em duas literaturas: a primeira é a Literatura, casa onde residem todos os clássicos, antigos ou modernos, que conhecemos, sempre visitada pelos membros do meio acadêmico e por eles mantida; e a segunda é a “paraliteratura” que, segundo a definição do Dicionário Informal, é um

 

Termo com que se designam todas as formas não canônicas de literatura que em regra não são aceitas por certos eruditos, certas instituições acadêmicas ou certos meios de comunicação.

Auto-ajuda, folhetins romanescos, literatura cor-de-rosa, romance ultra-light, literatura de cordel, literatura oral e tradicional, banda desenhada, literatura marginal, pornográfica, policial e popular, são exemplos de paraliteratura.

 

Percebe, Ivair, a petulância do meio acadêmico?

A razão para tal apartheid entre a literatura “canônica” e a paraliteratura é justificada por motivos vários, tais como o enfoque da primeira maior nas personagens do que no enredo, ou no fato de a primeira buscar na “realidade” os seus temas, enquanto a segunda foge dela. Tais termos caem por terra quando vemos um personagem com a profundidade de Snape em Harry Potter, por exemplo, relegado à paraliteratura, ou quando percebemos que histórias de policiais ou pornográficas têm sua origem na realidade e ainda assim são relegadas à segunda categoria.

É de estranhar que, dentre toda a produção cultural da humanidade, apenas uma pequena parcela seja chamada pelos acadêmicos de “literatura”, enquanto o resto, tal como um satélite, gira, mas não exerce impacto tão forte dentro de uma universidade.

De acordo com Brian Reynolds Myers em seu livro A Reader’s Manifesto, essa divisão advém puramente do ego dos eruditos. Certamente isso não é a melhor forma de explicar seu ponto de vista, mas nem por isso deixa de fazer sentido. A crítica literária é um campo minado, assim como a crítica de cinema. É comum que, por questões puramente pessoais, um crítico crie uma imagem positiva ou negativa a respeito do trabalho de um autor: o importante não é a obra em si, e sim o autor dela. Quem nunca ouviu falar sobre o fato de as críticas negativas sobre Edgar Allan Poe, focadas quase completamente em sua vida pessoal, e não no seu trabalho, terem tido efeito reverso e acabado por torná-lo uma lenda da literatura mundial?

Ele, claro, foi uma exceção. Uma crítica ruim pode acabar com a carreira de um autor, e se ele realmente deseja se manter no ramo, é inútil escrever boas obras. Deve, sim, manter boas relações. Se tiver bons aliados e escrever de forma que pareça inteligente, o sucesso é garantido, caso contrário pode entregar-se às garras do capitalismo e escrever paraliteratura. E, claro, esquecer a possibilidade de qualquer acadêmico estudar sua obra.

Creio que alonguei-me por demais até aqui, e termino este meu segundo texto aqui na Avessa com a seguinte reflexão: será que não é por conta dos fatos supracitados que os jovens não costumam ter o hábito da leitura? Aprendemos no Ensino Médio sobre a Literatura “de verdade”: Dom Casmurro, Lusíadas, Memórias de um Sargento de Milícias… Todos textos antigos e normalmente difíceis de entender para uma pessoa que não tem o hábito de ler. Longe de defender Harry Potter nas escolas, mas categorizar uma literatura como melhor e/ou mais especial do que as outras e, então, ensinar apenas essa, não parece um bom caminho para quem quer educar uma pessoa que não nasceu do século XIX para trás e, portanto, pode até mesmo perder o interesse na arte por considerá-la enfadonha. Digo por mim mesmo – Memórias de um Sargento de Milícias foi um osso duro de roer -, que sempre nutri apreço pela leitura.  Imagine, então, para alguém sem a mesma afeição pelo hobby… Pois é.

Os tempos são outros. Aceitar que o que existe fora da pequena bolha acadêmica também apresenta claro conteúdo literário, tão digno de ser estudado quanto qualquer cânone, é apenas ser realista.

O resto é mentira.

Por Jaime de Andruart

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